Acerca de mim

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Sintra/Miranda do Douro, Portugal
Gosto de pintar,de escrever e de fazer trabalhos manuais.Sou simples e verdadeira. Tenho que pôr paixão naquilo que faço, caso contrário fico com tédio. Ensinar, foi para mim uma paixão; escrever e pintar, continua a sê-lo. Sou sensível e sofro com as injustiças do Mundo. A minha primeira língua foi o Mirandês. Escrevo nessa língua no blog da minha aldeia Especiosa em, http://especiosameuamor.blogspot.com em Cachoneira de Letras de la Speciosa e no Froles mirandesas.

sábado, 24 de julho de 2010

Poeticamente...


Às vezes, antes que os meus dedos escrevam, no meu corpo eu sinto ondas de musicalidade daquilo em que penso, mesmo que não pense em palavras, não pense em frases com que possa fazer um texto, uma palavra que seja. Ondas de musicalidade a virem-me nem sei de onde, música a rimar em poemas.

Tentei desenhar letras com essa música mas as pálpebras pesaram-me até que, os cílios finalmente uniram-se em toques leves.
Dormi uma pequena sesta no sofá da sala, depois de ter fechado todas as janelas. Uma mosca insistia no seu zumbido. Odeio moscas, odeio-as tanto que era capaz de lhes infringir um assassinato colectivo. Odeio moscas e odeio muitas mais coisas, já que tenho mau feitio...
Odiar não, acho que não odeio seja o que for, ódio não, apenas intolerância.
Há que dar musicalidade poética à vida para que a vida possa suportar as intolerâncias...

Uma das coisas é o maldito pano do pó assim como o aspirador e a vassoura. Com eles até urticária sinto nas veias. Prefiro uma enxada, mesmo que de pontas longas a furar a terra, a dobrar-me os quadris e a contrair-me as vísceras...
Olhei a mesa e, a presumível transparência do tampo de vidro que cobre um trilho (utensílio com que se debulhava o cereal), tinha uma opacidade de rocha branca. É preciso pôr as mãos à penosa obra de acabar com o pó da sala que afinal tinha sido limpa ainda havia menos de uma semana.
Peguei no objecto do meu suplício e lancei-me à mesa. Limpei-lhe o pó, depois lavei-a com um pano molhado e sequei-a com um jornal de notícias amareladas. Como que em sonho, toquei piano enquanto limpava, eu que de música nada sei. Fui tocando, tocando, acariciando teclas, voltando folhas da partitura. A mesa ficou impecavelmente limpa, primorosamente tocada pelos dedos leves do jornal cada vez mais desfeito de suas bombásticas notícias.

Os móveis são de cera, como era o pequeno móvel feito de madeira de eucalipto onde a minha infância guarda as loiças de festa. Claro por dentro e escurecido por fora à custa do tempo e do fumo que viajava por toda a casa, enquanto não existiu a humilde chaminé. O único móvel que havia para além dos escanos, esfregados com água e sabão azul e as arcas de madeira onde se guardavam as roupas de casa e de vestir. Por falta de espaço muitas coisas se atafulhavam debaixo das camas de ferro encostadas à parede e tapadas as misérias com a dianteira, um pano branco bordado e com renda que se prendia debaixo do colchão de palha e que tapava todo o recheio familiar e supria a falta de móveis.
Cera virgem de abelha lhe punha a minha avó e lhe puxava o lustro com uma meia de lã de ovelha cravejada de remendos e de buracos, tricotada pelas mãos hábeis da minha mãe. Muito próximo estava a mosqueira e dela me chegou o cheiro a toucinho, a chouriça cozida e a todas as coisas que era preciso conservar na despensa fresca, quando a electricidade descia pelos fios da candeia até ao prato.

Peguei na cera, subi ao colo da minha mãe e da minha avó Ana e esfregando o pano vezes sem conta trouxe aos móveis de antiquário, de casas doutras infâncias, um brilho e vida que seguramente nunca teriam tido, um brilho poético porque poeticamente polidos com a meia de lã de ovelha da minha memória. Um brilho de fazer inveja à velha caldeira de cobre esfregada com cinza e aos potes de ferro que trazem o brilho da areia das valetas do caminho, depois de passar a enxurrada e que cheiram a sabão em barra, azul e branco a lembrar o céu.
Poeticamente...
Poeticamente, enfeitiçando as minhas intolerâncias...

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