Acerca de mim

A minha foto
Sintra/Miranda do Douro, Portugal
Gosto de pintar,de escrever e de fazer trabalhos manuais.Sou simples e verdadeira. Tenho que pôr paixão naquilo que faço, caso contrário fico com tédio. Ensinar, foi para mim uma paixão; escrever e pintar, continua a sê-lo. Sou sensível e sofro com as injustiças do Mundo. A minha primeira língua foi o Mirandês. Escrevo nessa língua no blog da minha aldeia Especiosa em, http://especiosameuamor.blogspot.com em Cachoneira de Letras de la Speciosa e no Froles mirandesas.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Para o resto dos temporais

Mar bravo, tempestade, rebentação medonha . Chuva, muita chuva, gelada, a molhar-lhe os pés descalços sobre a areia.
Sete saias a escorrer, o leite dos seios a verter, os olhos fixos no horizonte indefinido pela neblina que a chuva causava, ali estava à espera. Começou por gritar pelo Toino, depois, a blasfemar o mar, agora este grito que lhe sai em surdina, Toino, Toino, volta.
O leite a sair, as sete saias agarradas ao corpo, de tão molhadas.
Rita, vai para casa! Não vês que o Toino já foi engolido pelo mesmo mar que engoliu os nossos homens e outros, assim como engoliu o teu pai.
Agora,...tu sempre tens o dinheiro do seguro!
Invejosas, agoirentas, cambada de mulheres insensíveis. Sabem lá elas o que é um homem e a falta que o Toino me fará.
Qual seguro, que metam no cú o seguro. Eu quero o meu homem forte, aquele que depois da faina me traz o calor agarrado ao corpo de homem, me enche de beijos, me faz subir à Lua.
Invejosas,...sabem lá elas o que é um homem!
Por instantes, breves instantes, entrou em devaneio sem que se lembrasse que o seu homem estava a debater-se com as ondas.
Depois, o leite apertou, escorreu pela blusa apertada, os seios a rebentar; virou as costas ao mar, para ir dar de mamar aos gémeos, fruto de uma noite de amor depois da faina, o Toino de pele morena pelo sol, quente, ardente, barco cheio.
Soltou-se do cais rezando à Senhora da Nazaré, dos Navegantes, à Senhora dos Amantes para que lhe devolvam o Toino, o seu Toino. Senhoras, trazei-mo no dia em que ele faz trinta anos. Já tenho um bolo feito, uma garrafa de vinho à espera, uma ceia de carne fresca bem temperada.
Os gémeos choravam famintos e a eles pediu perdão pela demora da entrega daquele leite retesado. Depois, pôs a mesa para cinco, seriam sete com os gémeos, seis mais o Toino.
Qual seguro??!!! Pra merda vá o seguro, seis bocas para alimentar, pra merda vá o seguro, com a cama fria.
Sacudiu as sete saias, voltou a desafiar o mar, voltou a gritar, agora que já recuperara o fôlego.
Metade da barcaça a flutuar, gritos de mulheres, filhos agarrados às sete saias...
Dois vultos em cima dos madeiros agarrados que nem lapas à rocha molhada...
Falta um, gritavam.
Ai de nós!! Ai de nós, com esta rebentação!...
Este mar medonho da Nazaré, este temporal, este frio!
A quem tocaria a desdita desta vez!!??
Seria o seu home, ti Maria??!!
Falta, falta o seu home, são duas cabeças escuras que voltam.
Gritos, mais gritos.
O lenço vermelho do Toino a agitar-se, o bolo, a mesa à espera, os seios de Rita a encher, o sangue a correr de novo nas artérias, os gritos, o desespero, os trinta anos feitos, o alívio para Toino e Rita, um corpo que na manhã seguinte deu à costa!

A última das sete saias, negra, para o resto dos temporais...

Desta noite

Desta noite, pouco mais resta que o torpor dos meus pés arrastados pelo tempo que os impede de correr e que em mais não são capazes de se dar, que em passos lassos.
Desta noite pouco mais resta que o medo que as gentes sentem das águas que galgam pontes, destroem caminhos, inundam sonhos e suores de uma vida inteira.
Respirou leve o vento e, por agora deixou de sibilar, envergonhado pelo medo que provocou à minha cabeleira arrepiada quando, num acto de coragem tentou roubar-lhe as asas para com elas voar. Ah, mas as asas do vento, de tão violento o vento ser, perderam as penas que, voando para longe se foram acoitar nos destroços das árvores despedaçadas que fizeram diques no ribeiro. As penas das asas do vento pararam, juntamente com os escassos haveres da pobre gente e lá ficaram; em vez de asas, usou redes de aço, de nós juntos e, tudo arrancam, tudo levam.
Desta noite pouco mais resta que um leve bater do coração, um coração arritmado, desejoso de adormecer e com o seu sono, arrastar para o suicídio até às mais ínfimas partes, o corpo e a alma, para que se imolem em labaredas de fogo viperinas, num suicídio colectivo. Quer matar-se, mas matar-se por amor e a seguir renascer, sem mácula e fresco como a laranja acabada de colher, forte como o castanheiro que resistiu firme à noite de vendaval.
Desta noite pouco mais me resta que um turbilhão de sentires, agora que o vento me devolveu o silêncio, quebrado pelo tic-tac do relógio que eu desejo parado, e que eu desejo que de outro ponto da casa não me chegasse o som da televisão. É por isso que gosto de me deitar com a madrugada a caminhar para a aurora e assim dispor do silêncio pleno, apenas quebrado pelo som dos meus dedos a bater nas teclas, em melodia sincronizada com os impulsos que da minha mente se evadem, libertinos.
Desta noite, depois que as nuvens deixaram de chorar, resto eu, nesta sala aquecida, olhando o exterior através das janelas e nada vendo que não sejam imagens reflectidas nos vidros de tudo quanto na sala existe, incluindo o reflexo da minha própria imagem um pouco nostálgica, boina preta a descair para o lado direito.
Desta noite, resta a humidade fria dos lamaçais, o uivo dos lobos no monte aqui em cima, a raposa que desce à aldeia a visitar uma capoeira aonde possa entrar.
Desta noite,...não sei se eu própria resto...

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Todos os dias

Dá-me de comer
antes que tenha
a mão estendida.

Dá-me um carinho
antes que uma lágrima
me ensope o peito.

Dá-me fraternidade
e distribui-me sonhos
antes que seja Natal.

Todos os dias
tenho os maxilares cerrados
a segurar o que não tenho.

Todos os dias
tenho o peito cerrado
a segurar as lágrimas
para que não sequem.

Todos os dias
tenho a alma aberta
desejando que todos os dias...
sejam dias e noites
de Dezembro

Veludo de seda de Dezembro

Já lhe mandei um sms que já terá lido em Milão onde chegou ontem, de avião, para passar o Natal em Sienna, mais precisamente em Santa Colomba, uma pequena localidade. Irá hoje de autocarro, ainda a restabelecer-se de febrões que teve no dia anterior e toda a noite. Aconselhei-o a adiar o voo por mais um dia. Mas não! Seguiu.
Seguiu para Santa Colomba, para uma casa edificada numa colina defronte a uma mata, onde pássaros cantam alegremente e onde as corsas se passeiam emitindo sons, linguagem que só elas entendem e que nos fazem companhia noite e dia. Um lugar paradisíaco daquele país que adoro.
A companheira só chega hoje ao fim da tarde, não lhes foi possível viajar no mesmo voo.
Eu não me importo por não ter a família toda reunida, uma vez que para mim o Natal não tem mais valor que qualquer outro dia. No próximo ano será na Especiosa, todos juntos, portugueses e italianos; assim esperamos.
Hoje faz trinta e quatro anos, o meu menino mais velho. Sempre meninos para a mãe...
Fui tratá-lo para que pudesse alimentar-se o melhor possível. Suspeitámos inicialmente de que se tratásse de gripe A, mas em breve nos apercebemos de que, pelos sintomas que apresentava, não seria.
São sempre meninos, os nossos meninos. Passamos a encarar as reacções das nossas mães com outros olhos depois da experiência da maternidade.
Estava sózinho, a arder em febre de quarenta graus. A companheira, a italianita, trabalha em Coimbra de onde regressa todas as semanas às quinta à noite ou sextas de manhã, para voltar na terça de manhã.
Deitei-me no sofá da sala e deitei-me preocupada, pensando que iria dormir a sono solto e não tinha com que despertar. Mas não, uma mãe não dorme a sono solto.
Qualquer movimento, o antipirético e o antibiótico a horas e, a mãe, quase que por magia, acorda sem despertador.
Voltei pelo menos trinta e quatro anos atrás, ao tempo que cheirava a bébé em casa, àquele aroma inconfundível, àquele choro ao meio da noite, o biberão, a mama dada num curto período de tempo, porque curta foi a licença de maternidade que só durou até cinco de Janeiro.
Hoje, estou de parabéns eu também, por aquela experiência fantástica, um musgo verde, veludo de seda de Dezembro.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Com macieza...

Com golpes de palavras
Sente o frio
De perdidos no deserto
Moribundos
Em dunas gélidas.
Vacila
Mete-se num casulo
Protege-se.
Reconstitui-se
Em metamorfoses
Sai
Enfrenta a noite
Vai.
Agita o corpo
E a amoreira
De que se alimenta.
Reinventa
Não esmorece
Tece
Um manto de seda.
Em macieza...
Aquece.

domingo, 13 de dezembro de 2009

A quem importará???!!!

Porque te lançaste num bote
Que sabias rebentado?
Desejo de morte
Por suicídio premeditado?
Ou pensaste
Que o bote não transbordaria
E que a água sairia?
Ao invés
Mais água entrou
Pelo rombo.
Sentiste-te perdida
Sem bússola
Sem norte
Sem bomba para esvaziar o bote.
Reflectiste
E, antes do naufrágio
Com a última réstia de coragem
Saíste
E, deixando-te levar pelas correntes
Boiaste sobre as águas
Sem ao menos saberes
A direcção do vento.
Que me importa??!!
A quem importará, pensate!!...
A mim, respondo-te
Enquanto junto os destroços
Do teu bote naufragado
E que encontrei naquela praia
Onde me fortaleço.
Trago comigo fio resistente
Para bordar a ponto de grilhão
Pontos firmes.
E trago seda
Para abrir guaritas para a alma
E bordar a ponto de crivo
Transparentes e leves
Para que possas receber o sol
Que te fortaleça
Para que recebas o canto leve das ondas
Que te restabeleça
A minha manta
Que te aqueça.
Trago comigo uma bússola
Para que orientes os teus passos
Débeis passos
E para que firme
Sigas.
Tu sabes,…

A mim importa!...


sábado, 5 de dezembro de 2009

Disse ela um dia

Chegaste no tempo dos sonhos dourados, das flores em botão, das brisas frescas...
Chegaste numa manhã de orvalho nos meus seios.
Imaginaste-me desnuda no mar fechado, concha viva que não abriste.
Nem sabes por quanto tempo senti o doce dos teus beijos nos meus lábios já dormentes, as dores nas mãos caídas que seguraram o ramo de laranjeira murcho do qual restavam apenas troncos secos, o peso do tule a sair dos cabelos negros, enegrecido pelo tempo, a vergonha pelo vestido bambo na magreza de ossos espetados.
Nem sabes a dor que senti no peito quando me deixaste plantada num vaso de flores ao lado da igreja, o padre com as hóstias no cálice, o livro das promessas na mão à tua espera, os convidados com fome do almoço, as jovens a imaginarem-se, uns e outros a imaginarem-se noivos. Eu plantada no vaso do jardim da igreja,... dá azar o noivo ver a noiva antes da chegada ao altar.
Azar tivera eu dez meses antes, quando te conheci. Tão imbecil que eu fui, irresponsável tu por teres acreditado no herói que te confessou já ter dormido comigo. Mentira, grande mentira, agora te digo, macho ignorante a cheirar a cavalo. Nem sei porque te maltrato enquanto olho para as cinzas do ramo de laranjeira esquecidas no canto do quintal, daquele ramo que ao contrário de ti, eu merecia. Queria oferecê-lo à virgem, ali no altar, todos a testemunhar a virgindade perante a Senhora Virgem.
Parva que eu fui por ter ficado plantada na vida, a chorar-te durante anos, a chorar o único amor, o primeiro amor, como se o primeiro fosse o mais intenso, o único, o único possível.
Agora te digo, nem sei porque falei hoje nisto,... que o melhor amor é o último, aquele que nos segura as mãos até um dia, até um dia qualquer...
Que já tinha dormido com outro,... referiu ela mais uma vez na carta que mentalmente lhe escreveu.
E se tivesse??!! Eras tu por acaso casto???!!

Ainda hoje...

Hoje decidi não esperar pelo o silêncio da madrugada para escrever. Hoje, sob uma atmosfera pardacenta de uma tarde de sábado, nuvens a ensombrar o sol, nevoeiro leve que me impede de ver o Palácio da Pena mas que eu imagino rodeado de árvores, numa mistura de verde e amarelo, gotas de orvalho a deslizar pelos troncos seculares, assim escrevo. Alma desnuda, como desnuda está a pereira aqui ao lado, no quintal.
Hoje sinto a quietude da madrugada nesta tarde que me convida a ficar enroscado junto à lareira, a cheirar a fumo, gato friorento da minha infância encostado à cinza aconchegada com brasas e que em breve chamuscava o pelo.
Hoje falo com a quietude de quem está de bem com o mundo, ainda que o mundo o não mereça.
Não vou falar de ódios, nem de fomes nem de prendas; não vou falar de excentricidades de quem quer ir à lua numa viagem de egocentrismo, quando ao seu lado e à sua frente há crianças sem pão, sem água, sem sabão.
Também não vou falar do Natal de hoje em dia, o Natal em que se venera um redentor carregado de opulência e consumismo, um redentor vencido pela ganância e vendido por um carro de alta cilindrada e uma conta choruda num qualquer paraíso fiscal.
Também não me cansarei com a conversa esfarrapada da urgência de que outro redentor nasça, por não acreditar que alguém seja capaz de redimir coisa nenhuma nem ninguém, senão a ele próprio, se para isso se esforçar. Acredito que o redentor deste século se tornaria corrupto em menos de nada, tão ou mais corrupto que outros...
Hoje vou falar do Natal de uma menina que, como muitos outros meninos nasceu numa cama de palha, colchão de riscas largas aberto ao meio, para que de manhã as palhas fossem remexidas e ficassem uniformemente em toda a cama, partilhada por uns quantos meninos, uns deitados para a cabeceira, outros distribuídos com as cabecitas para o lado dos pés. Telhados que permitiam que se falasse com a lua e as estrelas logo que a torcida da candeia deitasse fumo, luz que rapidamente se apagava para poupar o azeite para as batatas.
...De manhã acordava cedo e corria para ver o sapatinho que tinha deixado na lareira. Um sapatinho cheio de prendas que o Menino Jesus distribuía durante a noite a todos os meninos.
Dois rebuçados, uns figos secos, umas nozes, uns tostões em anos de menor crise.
Sonhava com ele, com ele corria pelos telhados, deslocava uma telha e entrava descendo pelas varas do fumeiro, roupas cheias de fuligem, coração repleto de alegria, saquinhos cheios de mimos para todos os meninos.
Depois, na missa do Galo beijava aquele menino e a rever o sonho mágico olhava as vestes brancas do Menino e admirava-as com as rendas impecavelmente brancas, apesar da fuligem das cozinhas.
Os seus olhos vivos de centelha fizeram filmes mágicos durante uns anos, nesses Natais passados em família, tão puros, tão ricos,... no meio daqueles nadas mas que eram tudo; eram amor, alegria, solidariedade, magia de meninos...
Num Natal, a mãe atrasara-se por qualquer motivo e quando correu para a sapatinho viu-o vazio. Pela reacção da mãe, apercebeu-se de que não seria bem assim como lhe faziam crer e que haveria outra versão da história... Foi o último Natal de magia...
Nunca mais esqueceu aquele momento de atrapalhação da mãe.
Procura viver todos os dias esse mesmo espírito de Natal.

...sentada no silêncio

Quase, quase cansada,...
neste siléncio que reconforta,
quebrado pelos sons ténues dum violino imaginário.
Sento-me no peito doce desta solidão desejada e aqui, eu sou eu, sou tu, sou tudo, sou nada.
Desejo continuar a conversar com o vazio da sala onde dedilho, teclas que pertubam esta quietude mas que ao mesmo tempo me enfeitiçam;... este som que tantas vezes desejo, este som que desesperadamente procuro, este dedilhar que me evade em asas transparentes, quando em pontas de ballet, me solto.
Tudo dorme à minha volta, o vento recolheu-se na caverna, está cansado de tanto se agitar e as folhas amarelecidas do diospireiro, quase soltas, a agarrarem-se a pequenos nada para não caírem, finalmente sossegaram, com o vento preso.
Também as folhas estão a respirar o mesmo silêncio desta madrugada fria.
Escuta, encosta-te ao lado esquerdo do meu peito, ouve o bater leve, tão leve, passarinho a dormir no ninho, enroscado.
Ouviste silêncio, ouviste o bater do meu pobre coração?
Estou quase cansada... as minhas pálpebras vão-se fechando em pestanejos, espassadamente, para que os meus olhos se deleitem em horizontes longínquos, perdidos...
Silêncio, consegues sentir??!!
Os dois estamos cansados, eu e tu!!!...

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Pelo menos esta noite!


Fui dar uma caminhada atravessando o parque da cidade, construído a jeito das pessoas amantes da natureza. Atravessado por um pequeno curso de água, relva bem cuidada, árvores viçosas, bancos de madeira pintados de castanho e com a inclinação adequada às costas, como convém. Gosto daquele sítio, onde pode dar as voltas que quiser em círculos, trinta minutos cada percurso a andar bem. Ainda há Câmaras cujos responsáveis que um dia por lá passaram, fizeram alguma coisa que não fosse atentado à saúde mental e física das pessoas e massacre da natureza em benefício do betão armado.
Apesar do dia a ameaçar chuva saí de casa. O parque era quase exclusivamente meu. Caminhei até me cansar; desci dois degraus e sentei-me no banco virado para o riacho. Na mochila tinha um livro, Istambul, de Orhan Pamuk. Não me apeteceu ler e fiquei em silêncio, de olhar distante sem que aparentemente nada visse daquilo que estava ao alcance dos meus olhos.
O relógio do tempo tirou-me treze anos, naquele preciso momento. Não são muitos, afinal o que são treze anos. Os degraus, os escassos dois degraus multiplicaram-se por dezenas e vi-me naquele preciso momento nas escadarias do Sacré Coeur que subimos duma assentada até lá acima. É certo que ao fim estavamos quase sem fôlego, mas subimos. treze anos feitos em Agosto, um Agosto quente em Paris, a viagem de carro para lhe fazer a rodagem.
Não era essa viagem que desejaria fazer, preferia uma praia onde se recuperasse do cansaço. Depois mudei de ideias e ao fim dos dez dias e de longas caminhadas, a sair aqui do metro, para entrar noutro lado, para ir ver mais isto e mais aquilo na avidez dos quase cinquenta anos, a avidez de viver quando já se sente que se passou da meia idade.
Fui à calista pédicure tratar os pés, massajar os músculos que sentia tão tensos do excesso de trabalho em correrias durante todo o ano e os exames no mês de Julho. Sempre me senti tensa em época de exames. Pensava que a idade me daria mais tranquilidade, mas não!
Comprei sandálias macias. Tenho um toque delicado e as minhas mãos grandes têm uma sensibilidade fora de comum ao toque. Os pés também e de que modo!
E lá fiquei naquele banco de madeira com o livro ao lado a reproduzir a película de há treze anos, a contemplar Paris, do Sacré Coeur. A vista magnífica sobre a cidade que já tínhamos percorrido nos dias anteriores, o jantar num restaurante indiano em Monmartre, o passeio a pé depois de jantar, até o Moulin Rouge. Os convites para entrarmos nos espectáculos porno-eróticos: Parle italiano? Spanhol? Portugais? Não sei porquê, mas na grande parte das vezes éramos considerados italianos. Os convites feitos ao meu marido através de olhares das mulheres sentadas nos bancos ao balcão, nos inúmeros bares desse bairro de prostituição, uma entrada numa sex shop.
Uma volta de carro pela cidade para ficar com ua ideia global da sua beleza nocturna, passagem pelo túnel onde dois dias depois, a Princesa Diana viria a falecer, o regresso ao hotel ali perto.
O calor durante o dia, as idas ao hotel no pico do calor, para descansar. Um banho, cama com os lençóis brancos impecavelmente feita de lavado, o convite para deitar, o amor fresco dos quarenta aos cinquenta, o filme a rebobinar nos corpos refrescados pela climatização, eu a rebobiná-lo agora.
O percurso dos Castelos do Loire, o dia passado no Futuroscópio como crianças na viagem de ida, Chartres na de regresso, com as suas ruas estreitas, os vinhos, a catedral dificilmente captada pela objectiva no retrato, de tão alta.
Decidi que naquele momento e pelo menos até a manhã seguinte teria menos treze anos.
Prometi a mim própria voltar a Paris tenha a idade que tiver, subir ao Sacré Coeur, quiçá de elevador.
Prometi isso a mim própria quando entrei no carro, ao escurecer, para ir para casa. Pelo menos esta noite, pelo menos esta noite quero ter quarenta e sete anos!

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Arranca-me

Vai!
Arranca-me a lágrima do peito
Antes que cristalize em incenso
E com ele me queime
E me perca no escuro
Onde me deito.
Passeia pela minha rua
Sineta do meu corpo
Nesta noite gélida
Lagoa empedernida
Onde nem gota
A escorrer
Nem sorriso
Ou ai.
Vai!
Arranca-me um querer
Deste mar de indiferença
Onde adormeço.
Agita-me as águas
Levanta-me as ondas
Atinge-me as fendas
Parte os glaciares
Dos meus olhos
Neste mundo sem estrelas...

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Ainda hoje



Inês irritava-se que assim fosse.
Porquê que havia de ser concha fechada no fundo do Oceano, bicho a hibernar à espera de crescer, para ser a delícia da gula num piquenique qualquer.
Ela era concha sim, mas de asas abertas, a esvoaçar, ela era uma borboleta colorida. Tão colorida, santo Deus!
Porquê que há-de uma borboleta ficar de asas fechadas no fundo do oceano, uma borboleta de asas fechadas ao frio, com cores esbatidas por falta de luz, uma borboleta anémica e despigmentada.
Ela tinha na alma o céu com o voo dos pássaros, nos olhos as flores com o tactear constante das borboletas, no ventre o pólen com o rodopiar das abelhas em luta renhida, no coração o néctar com o trepidar nervoso do beija-flor em busca de mel em luta de loucura a bater as asas e o bico a penetrar no gineceu das flores, até à mais íntima das entranhas.
Porque havia de ser assim, aquela castração de menina mulher poema, mulher viola em serenata, só porque qualquer cor ofuscava o negro de que se vestiam, de que se vestia todo aquele tempo!...
Porque havia de ser assim, só porque um beija-flor pudesse agitar o doce no gineceu das suas entranhas ou tocasse no botão de rosa e em sensualidade, uma rosa desabrochasse.
Um olhar, um convite para dançar...
Um olhar imenso, do tamanho do prado verde na Primavera, da doçura da calmaria das searas de trigo loiro no mês de Julho.
O olhar tremeu, o corpo muito mais, ramo agitado pelo vento.
O que faço, perguntou-se uma parte dela? Não, o que dirão!...
Estás parva, respondeu a outra metade com as pernas bambas e o coração a bater em golfadas de sangue quente, descompassado.
Envolveram-se em braços, arfares em pleno Inverno ao mínimo toque de olhares e de dedos. Mãos que tacteavam, rostos próximos a misturar os perfumes dos cabelos, perfumes bravios a carqueja e esteva, tão bravios como os seus corpos, tão docemente bravios e pungentes. Corpos entumecidos na melodia que já não ouviam, na música dos passos, os passos dos corpos em canção, corpos que tocavam, que tremiam.
Depois um olhar vigilante e uma quase vergonha de qualquer coisa que vergonha não seria á luz dos impulsos. Um braço esticado, um desapegar, um resfriar, um céu interrompido, um purgatório não merecido.
Irritava-se que assim fosse, mas tinha que ser. Porque havia de ser!?
Ainda hoje se irrita que assim tivesse sido!...

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