Acerca de mim

A minha foto
Sintra/Miranda do Douro, Portugal
Gosto de pintar,de escrever e de fazer trabalhos manuais.Sou simples e verdadeira. Tenho que pôr paixão naquilo que faço, caso contrário fico com tédio. Ensinar, foi para mim uma paixão; escrever e pintar, continua a sê-lo. Sou sensível e sofro com as injustiças do Mundo. A minha primeira língua foi o Mirandês. Escrevo nessa língua no blog da minha aldeia Especiosa em, http://especiosameuamor.blogspot.com em Cachoneira de Letras de la Speciosa e no Froles mirandesas.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Para o resto dos temporais

Mar bravo, tempestade, rebentação medonha . Chuva, muita chuva, gelada, a molhar-lhe os pés descalços sobre a areia.
Sete saias a escorrer, o leite dos seios a verter, os olhos fixos no horizonte indefinido pela neblina que a chuva causava, ali estava à espera. Começou por gritar pelo Toino, depois, a blasfemar o mar, agora este grito que lhe sai em surdina, Toino, Toino, volta.
O leite a sair, as sete saias agarradas ao corpo, de tão molhadas.
Rita, vai para casa! Não vês que o Toino já foi engolido pelo mesmo mar que engoliu os nossos homens e outros, assim como engoliu o teu pai.
Agora,...tu sempre tens o dinheiro do seguro!
Invejosas, agoirentas, cambada de mulheres insensíveis. Sabem lá elas o que é um homem e a falta que o Toino me fará.
Qual seguro, que metam no cú o seguro. Eu quero o meu homem forte, aquele que depois da faina me traz o calor agarrado ao corpo de homem, me enche de beijos, me faz subir à Lua.
Invejosas,...sabem lá elas o que é um homem!
Por instantes, breves instantes, entrou em devaneio sem que se lembrasse que o seu homem estava a debater-se com as ondas.
Depois, o leite apertou, escorreu pela blusa apertada, os seios a rebentar; virou as costas ao mar, para ir dar de mamar aos gémeos, fruto de uma noite de amor depois da faina, o Toino de pele morena pelo sol, quente, ardente, barco cheio.
Soltou-se do cais rezando à Senhora da Nazaré, dos Navegantes, à Senhora dos Amantes para que lhe devolvam o Toino, o seu Toino. Senhoras, trazei-mo no dia em que ele faz trinta anos. Já tenho um bolo feito, uma garrafa de vinho à espera, uma ceia de carne fresca bem temperada.
Os gémeos choravam famintos e a eles pediu perdão pela demora da entrega daquele leite retesado. Depois, pôs a mesa para cinco, seriam sete com os gémeos, seis mais o Toino.
Qual seguro??!!! Pra merda vá o seguro, seis bocas para alimentar, pra merda vá o seguro, com a cama fria.
Sacudiu as sete saias, voltou a desafiar o mar, voltou a gritar, agora que já recuperara o fôlego.
Metade da barcaça a flutuar, gritos de mulheres, filhos agarrados às sete saias...
Dois vultos em cima dos madeiros agarrados que nem lapas à rocha molhada...
Falta um, gritavam.
Ai de nós!! Ai de nós, com esta rebentação!...
Este mar medonho da Nazaré, este temporal, este frio!
A quem tocaria a desdita desta vez!!??
Seria o seu home, ti Maria??!!
Falta, falta o seu home, são duas cabeças escuras que voltam.
Gritos, mais gritos.
O lenço vermelho do Toino a agitar-se, o bolo, a mesa à espera, os seios de Rita a encher, o sangue a correr de novo nas artérias, os gritos, o desespero, os trinta anos feitos, o alívio para Toino e Rita, um corpo que na manhã seguinte deu à costa!

A última das sete saias, negra, para o resto dos temporais...

Desta noite

Desta noite, pouco mais resta que o torpor dos meus pés arrastados pelo tempo que os impede de correr e que em mais não são capazes de se dar, que em passos lassos.
Desta noite pouco mais resta que o medo que as gentes sentem das águas que galgam pontes, destroem caminhos, inundam sonhos e suores de uma vida inteira.
Respirou leve o vento e, por agora deixou de sibilar, envergonhado pelo medo que provocou à minha cabeleira arrepiada quando, num acto de coragem tentou roubar-lhe as asas para com elas voar. Ah, mas as asas do vento, de tão violento o vento ser, perderam as penas que, voando para longe se foram acoitar nos destroços das árvores despedaçadas que fizeram diques no ribeiro. As penas das asas do vento pararam, juntamente com os escassos haveres da pobre gente e lá ficaram; em vez de asas, usou redes de aço, de nós juntos e, tudo arrancam, tudo levam.
Desta noite pouco mais resta que um leve bater do coração, um coração arritmado, desejoso de adormecer e com o seu sono, arrastar para o suicídio até às mais ínfimas partes, o corpo e a alma, para que se imolem em labaredas de fogo viperinas, num suicídio colectivo. Quer matar-se, mas matar-se por amor e a seguir renascer, sem mácula e fresco como a laranja acabada de colher, forte como o castanheiro que resistiu firme à noite de vendaval.
Desta noite pouco mais me resta que um turbilhão de sentires, agora que o vento me devolveu o silêncio, quebrado pelo tic-tac do relógio que eu desejo parado, e que eu desejo que de outro ponto da casa não me chegasse o som da televisão. É por isso que gosto de me deitar com a madrugada a caminhar para a aurora e assim dispor do silêncio pleno, apenas quebrado pelo som dos meus dedos a bater nas teclas, em melodia sincronizada com os impulsos que da minha mente se evadem, libertinos.
Desta noite, depois que as nuvens deixaram de chorar, resto eu, nesta sala aquecida, olhando o exterior através das janelas e nada vendo que não sejam imagens reflectidas nos vidros de tudo quanto na sala existe, incluindo o reflexo da minha própria imagem um pouco nostálgica, boina preta a descair para o lado direito.
Desta noite, resta a humidade fria dos lamaçais, o uivo dos lobos no monte aqui em cima, a raposa que desce à aldeia a visitar uma capoeira aonde possa entrar.
Desta noite,...não sei se eu própria resto...

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Todos os dias

Dá-me de comer
antes que tenha
a mão estendida.

Dá-me um carinho
antes que uma lágrima
me ensope o peito.

Dá-me fraternidade
e distribui-me sonhos
antes que seja Natal.

Todos os dias
tenho os maxilares cerrados
a segurar o que não tenho.

Todos os dias
tenho o peito cerrado
a segurar as lágrimas
para que não sequem.

Todos os dias
tenho a alma aberta
desejando que todos os dias...
sejam dias e noites
de Dezembro

Veludo de seda de Dezembro

Já lhe mandei um sms que já terá lido em Milão onde chegou ontem, de avião, para passar o Natal em Sienna, mais precisamente em Santa Colomba, uma pequena localidade. Irá hoje de autocarro, ainda a restabelecer-se de febrões que teve no dia anterior e toda a noite. Aconselhei-o a adiar o voo por mais um dia. Mas não! Seguiu.
Seguiu para Santa Colomba, para uma casa edificada numa colina defronte a uma mata, onde pássaros cantam alegremente e onde as corsas se passeiam emitindo sons, linguagem que só elas entendem e que nos fazem companhia noite e dia. Um lugar paradisíaco daquele país que adoro.
A companheira só chega hoje ao fim da tarde, não lhes foi possível viajar no mesmo voo.
Eu não me importo por não ter a família toda reunida, uma vez que para mim o Natal não tem mais valor que qualquer outro dia. No próximo ano será na Especiosa, todos juntos, portugueses e italianos; assim esperamos.
Hoje faz trinta e quatro anos, o meu menino mais velho. Sempre meninos para a mãe...
Fui tratá-lo para que pudesse alimentar-se o melhor possível. Suspeitámos inicialmente de que se tratásse de gripe A, mas em breve nos apercebemos de que, pelos sintomas que apresentava, não seria.
São sempre meninos, os nossos meninos. Passamos a encarar as reacções das nossas mães com outros olhos depois da experiência da maternidade.
Estava sózinho, a arder em febre de quarenta graus. A companheira, a italianita, trabalha em Coimbra de onde regressa todas as semanas às quinta à noite ou sextas de manhã, para voltar na terça de manhã.
Deitei-me no sofá da sala e deitei-me preocupada, pensando que iria dormir a sono solto e não tinha com que despertar. Mas não, uma mãe não dorme a sono solto.
Qualquer movimento, o antipirético e o antibiótico a horas e, a mãe, quase que por magia, acorda sem despertador.
Voltei pelo menos trinta e quatro anos atrás, ao tempo que cheirava a bébé em casa, àquele aroma inconfundível, àquele choro ao meio da noite, o biberão, a mama dada num curto período de tempo, porque curta foi a licença de maternidade que só durou até cinco de Janeiro.
Hoje, estou de parabéns eu também, por aquela experiência fantástica, um musgo verde, veludo de seda de Dezembro.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Com macieza...

Com golpes de palavras
Sente o frio
De perdidos no deserto
Moribundos
Em dunas gélidas.
Vacila
Mete-se num casulo
Protege-se.
Reconstitui-se
Em metamorfoses
Sai
Enfrenta a noite
Vai.
Agita o corpo
E a amoreira
De que se alimenta.
Reinventa
Não esmorece
Tece
Um manto de seda.
Em macieza...
Aquece.

domingo, 13 de dezembro de 2009

A quem importará???!!!

Porque te lançaste num bote
Que sabias rebentado?
Desejo de morte
Por suicídio premeditado?
Ou pensaste
Que o bote não transbordaria
E que a água sairia?
Ao invés
Mais água entrou
Pelo rombo.
Sentiste-te perdida
Sem bússola
Sem norte
Sem bomba para esvaziar o bote.
Reflectiste
E, antes do naufrágio
Com a última réstia de coragem
Saíste
E, deixando-te levar pelas correntes
Boiaste sobre as águas
Sem ao menos saberes
A direcção do vento.
Que me importa??!!
A quem importará, pensate!!...
A mim, respondo-te
Enquanto junto os destroços
Do teu bote naufragado
E que encontrei naquela praia
Onde me fortaleço.
Trago comigo fio resistente
Para bordar a ponto de grilhão
Pontos firmes.
E trago seda
Para abrir guaritas para a alma
E bordar a ponto de crivo
Transparentes e leves
Para que possas receber o sol
Que te fortaleça
Para que recebas o canto leve das ondas
Que te restabeleça
A minha manta
Que te aqueça.
Trago comigo uma bússola
Para que orientes os teus passos
Débeis passos
E para que firme
Sigas.
Tu sabes,…

A mim importa!...


sábado, 5 de dezembro de 2009

Disse ela um dia

Chegaste no tempo dos sonhos dourados, das flores em botão, das brisas frescas...
Chegaste numa manhã de orvalho nos meus seios.
Imaginaste-me desnuda no mar fechado, concha viva que não abriste.
Nem sabes por quanto tempo senti o doce dos teus beijos nos meus lábios já dormentes, as dores nas mãos caídas que seguraram o ramo de laranjeira murcho do qual restavam apenas troncos secos, o peso do tule a sair dos cabelos negros, enegrecido pelo tempo, a vergonha pelo vestido bambo na magreza de ossos espetados.
Nem sabes a dor que senti no peito quando me deixaste plantada num vaso de flores ao lado da igreja, o padre com as hóstias no cálice, o livro das promessas na mão à tua espera, os convidados com fome do almoço, as jovens a imaginarem-se, uns e outros a imaginarem-se noivos. Eu plantada no vaso do jardim da igreja,... dá azar o noivo ver a noiva antes da chegada ao altar.
Azar tivera eu dez meses antes, quando te conheci. Tão imbecil que eu fui, irresponsável tu por teres acreditado no herói que te confessou já ter dormido comigo. Mentira, grande mentira, agora te digo, macho ignorante a cheirar a cavalo. Nem sei porque te maltrato enquanto olho para as cinzas do ramo de laranjeira esquecidas no canto do quintal, daquele ramo que ao contrário de ti, eu merecia. Queria oferecê-lo à virgem, ali no altar, todos a testemunhar a virgindade perante a Senhora Virgem.
Parva que eu fui por ter ficado plantada na vida, a chorar-te durante anos, a chorar o único amor, o primeiro amor, como se o primeiro fosse o mais intenso, o único, o único possível.
Agora te digo, nem sei porque falei hoje nisto,... que o melhor amor é o último, aquele que nos segura as mãos até um dia, até um dia qualquer...
Que já tinha dormido com outro,... referiu ela mais uma vez na carta que mentalmente lhe escreveu.
E se tivesse??!! Eras tu por acaso casto???!!

Ainda hoje...

Hoje decidi não esperar pelo o silêncio da madrugada para escrever. Hoje, sob uma atmosfera pardacenta de uma tarde de sábado, nuvens a ensombrar o sol, nevoeiro leve que me impede de ver o Palácio da Pena mas que eu imagino rodeado de árvores, numa mistura de verde e amarelo, gotas de orvalho a deslizar pelos troncos seculares, assim escrevo. Alma desnuda, como desnuda está a pereira aqui ao lado, no quintal.
Hoje sinto a quietude da madrugada nesta tarde que me convida a ficar enroscado junto à lareira, a cheirar a fumo, gato friorento da minha infância encostado à cinza aconchegada com brasas e que em breve chamuscava o pelo.
Hoje falo com a quietude de quem está de bem com o mundo, ainda que o mundo o não mereça.
Não vou falar de ódios, nem de fomes nem de prendas; não vou falar de excentricidades de quem quer ir à lua numa viagem de egocentrismo, quando ao seu lado e à sua frente há crianças sem pão, sem água, sem sabão.
Também não vou falar do Natal de hoje em dia, o Natal em que se venera um redentor carregado de opulência e consumismo, um redentor vencido pela ganância e vendido por um carro de alta cilindrada e uma conta choruda num qualquer paraíso fiscal.
Também não me cansarei com a conversa esfarrapada da urgência de que outro redentor nasça, por não acreditar que alguém seja capaz de redimir coisa nenhuma nem ninguém, senão a ele próprio, se para isso se esforçar. Acredito que o redentor deste século se tornaria corrupto em menos de nada, tão ou mais corrupto que outros...
Hoje vou falar do Natal de uma menina que, como muitos outros meninos nasceu numa cama de palha, colchão de riscas largas aberto ao meio, para que de manhã as palhas fossem remexidas e ficassem uniformemente em toda a cama, partilhada por uns quantos meninos, uns deitados para a cabeceira, outros distribuídos com as cabecitas para o lado dos pés. Telhados que permitiam que se falasse com a lua e as estrelas logo que a torcida da candeia deitasse fumo, luz que rapidamente se apagava para poupar o azeite para as batatas.
...De manhã acordava cedo e corria para ver o sapatinho que tinha deixado na lareira. Um sapatinho cheio de prendas que o Menino Jesus distribuía durante a noite a todos os meninos.
Dois rebuçados, uns figos secos, umas nozes, uns tostões em anos de menor crise.
Sonhava com ele, com ele corria pelos telhados, deslocava uma telha e entrava descendo pelas varas do fumeiro, roupas cheias de fuligem, coração repleto de alegria, saquinhos cheios de mimos para todos os meninos.
Depois, na missa do Galo beijava aquele menino e a rever o sonho mágico olhava as vestes brancas do Menino e admirava-as com as rendas impecavelmente brancas, apesar da fuligem das cozinhas.
Os seus olhos vivos de centelha fizeram filmes mágicos durante uns anos, nesses Natais passados em família, tão puros, tão ricos,... no meio daqueles nadas mas que eram tudo; eram amor, alegria, solidariedade, magia de meninos...
Num Natal, a mãe atrasara-se por qualquer motivo e quando correu para a sapatinho viu-o vazio. Pela reacção da mãe, apercebeu-se de que não seria bem assim como lhe faziam crer e que haveria outra versão da história... Foi o último Natal de magia...
Nunca mais esqueceu aquele momento de atrapalhação da mãe.
Procura viver todos os dias esse mesmo espírito de Natal.

...sentada no silêncio

Quase, quase cansada,...
neste siléncio que reconforta,
quebrado pelos sons ténues dum violino imaginário.
Sento-me no peito doce desta solidão desejada e aqui, eu sou eu, sou tu, sou tudo, sou nada.
Desejo continuar a conversar com o vazio da sala onde dedilho, teclas que pertubam esta quietude mas que ao mesmo tempo me enfeitiçam;... este som que tantas vezes desejo, este som que desesperadamente procuro, este dedilhar que me evade em asas transparentes, quando em pontas de ballet, me solto.
Tudo dorme à minha volta, o vento recolheu-se na caverna, está cansado de tanto se agitar e as folhas amarelecidas do diospireiro, quase soltas, a agarrarem-se a pequenos nada para não caírem, finalmente sossegaram, com o vento preso.
Também as folhas estão a respirar o mesmo silêncio desta madrugada fria.
Escuta, encosta-te ao lado esquerdo do meu peito, ouve o bater leve, tão leve, passarinho a dormir no ninho, enroscado.
Ouviste silêncio, ouviste o bater do meu pobre coração?
Estou quase cansada... as minhas pálpebras vão-se fechando em pestanejos, espassadamente, para que os meus olhos se deleitem em horizontes longínquos, perdidos...
Silêncio, consegues sentir??!!
Os dois estamos cansados, eu e tu!!!...

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Pelo menos esta noite!


Fui dar uma caminhada atravessando o parque da cidade, construído a jeito das pessoas amantes da natureza. Atravessado por um pequeno curso de água, relva bem cuidada, árvores viçosas, bancos de madeira pintados de castanho e com a inclinação adequada às costas, como convém. Gosto daquele sítio, onde pode dar as voltas que quiser em círculos, trinta minutos cada percurso a andar bem. Ainda há Câmaras cujos responsáveis que um dia por lá passaram, fizeram alguma coisa que não fosse atentado à saúde mental e física das pessoas e massacre da natureza em benefício do betão armado.
Apesar do dia a ameaçar chuva saí de casa. O parque era quase exclusivamente meu. Caminhei até me cansar; desci dois degraus e sentei-me no banco virado para o riacho. Na mochila tinha um livro, Istambul, de Orhan Pamuk. Não me apeteceu ler e fiquei em silêncio, de olhar distante sem que aparentemente nada visse daquilo que estava ao alcance dos meus olhos.
O relógio do tempo tirou-me treze anos, naquele preciso momento. Não são muitos, afinal o que são treze anos. Os degraus, os escassos dois degraus multiplicaram-se por dezenas e vi-me naquele preciso momento nas escadarias do Sacré Coeur que subimos duma assentada até lá acima. É certo que ao fim estavamos quase sem fôlego, mas subimos. treze anos feitos em Agosto, um Agosto quente em Paris, a viagem de carro para lhe fazer a rodagem.
Não era essa viagem que desejaria fazer, preferia uma praia onde se recuperasse do cansaço. Depois mudei de ideias e ao fim dos dez dias e de longas caminhadas, a sair aqui do metro, para entrar noutro lado, para ir ver mais isto e mais aquilo na avidez dos quase cinquenta anos, a avidez de viver quando já se sente que se passou da meia idade.
Fui à calista pédicure tratar os pés, massajar os músculos que sentia tão tensos do excesso de trabalho em correrias durante todo o ano e os exames no mês de Julho. Sempre me senti tensa em época de exames. Pensava que a idade me daria mais tranquilidade, mas não!
Comprei sandálias macias. Tenho um toque delicado e as minhas mãos grandes têm uma sensibilidade fora de comum ao toque. Os pés também e de que modo!
E lá fiquei naquele banco de madeira com o livro ao lado a reproduzir a película de há treze anos, a contemplar Paris, do Sacré Coeur. A vista magnífica sobre a cidade que já tínhamos percorrido nos dias anteriores, o jantar num restaurante indiano em Monmartre, o passeio a pé depois de jantar, até o Moulin Rouge. Os convites para entrarmos nos espectáculos porno-eróticos: Parle italiano? Spanhol? Portugais? Não sei porquê, mas na grande parte das vezes éramos considerados italianos. Os convites feitos ao meu marido através de olhares das mulheres sentadas nos bancos ao balcão, nos inúmeros bares desse bairro de prostituição, uma entrada numa sex shop.
Uma volta de carro pela cidade para ficar com ua ideia global da sua beleza nocturna, passagem pelo túnel onde dois dias depois, a Princesa Diana viria a falecer, o regresso ao hotel ali perto.
O calor durante o dia, as idas ao hotel no pico do calor, para descansar. Um banho, cama com os lençóis brancos impecavelmente feita de lavado, o convite para deitar, o amor fresco dos quarenta aos cinquenta, o filme a rebobinar nos corpos refrescados pela climatização, eu a rebobiná-lo agora.
O percurso dos Castelos do Loire, o dia passado no Futuroscópio como crianças na viagem de ida, Chartres na de regresso, com as suas ruas estreitas, os vinhos, a catedral dificilmente captada pela objectiva no retrato, de tão alta.
Decidi que naquele momento e pelo menos até a manhã seguinte teria menos treze anos.
Prometi a mim própria voltar a Paris tenha a idade que tiver, subir ao Sacré Coeur, quiçá de elevador.
Prometi isso a mim própria quando entrei no carro, ao escurecer, para ir para casa. Pelo menos esta noite, pelo menos esta noite quero ter quarenta e sete anos!

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Arranca-me

Vai!
Arranca-me a lágrima do peito
Antes que cristalize em incenso
E com ele me queime
E me perca no escuro
Onde me deito.
Passeia pela minha rua
Sineta do meu corpo
Nesta noite gélida
Lagoa empedernida
Onde nem gota
A escorrer
Nem sorriso
Ou ai.
Vai!
Arranca-me um querer
Deste mar de indiferença
Onde adormeço.
Agita-me as águas
Levanta-me as ondas
Atinge-me as fendas
Parte os glaciares
Dos meus olhos
Neste mundo sem estrelas...

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Ainda hoje



Inês irritava-se que assim fosse.
Porquê que havia de ser concha fechada no fundo do Oceano, bicho a hibernar à espera de crescer, para ser a delícia da gula num piquenique qualquer.
Ela era concha sim, mas de asas abertas, a esvoaçar, ela era uma borboleta colorida. Tão colorida, santo Deus!
Porquê que há-de uma borboleta ficar de asas fechadas no fundo do oceano, uma borboleta de asas fechadas ao frio, com cores esbatidas por falta de luz, uma borboleta anémica e despigmentada.
Ela tinha na alma o céu com o voo dos pássaros, nos olhos as flores com o tactear constante das borboletas, no ventre o pólen com o rodopiar das abelhas em luta renhida, no coração o néctar com o trepidar nervoso do beija-flor em busca de mel em luta de loucura a bater as asas e o bico a penetrar no gineceu das flores, até à mais íntima das entranhas.
Porque havia de ser assim, aquela castração de menina mulher poema, mulher viola em serenata, só porque qualquer cor ofuscava o negro de que se vestiam, de que se vestia todo aquele tempo!...
Porque havia de ser assim, só porque um beija-flor pudesse agitar o doce no gineceu das suas entranhas ou tocasse no botão de rosa e em sensualidade, uma rosa desabrochasse.
Um olhar, um convite para dançar...
Um olhar imenso, do tamanho do prado verde na Primavera, da doçura da calmaria das searas de trigo loiro no mês de Julho.
O olhar tremeu, o corpo muito mais, ramo agitado pelo vento.
O que faço, perguntou-se uma parte dela? Não, o que dirão!...
Estás parva, respondeu a outra metade com as pernas bambas e o coração a bater em golfadas de sangue quente, descompassado.
Envolveram-se em braços, arfares em pleno Inverno ao mínimo toque de olhares e de dedos. Mãos que tacteavam, rostos próximos a misturar os perfumes dos cabelos, perfumes bravios a carqueja e esteva, tão bravios como os seus corpos, tão docemente bravios e pungentes. Corpos entumecidos na melodia que já não ouviam, na música dos passos, os passos dos corpos em canção, corpos que tocavam, que tremiam.
Depois um olhar vigilante e uma quase vergonha de qualquer coisa que vergonha não seria á luz dos impulsos. Um braço esticado, um desapegar, um resfriar, um céu interrompido, um purgatório não merecido.
Irritava-se que assim fosse, mas tinha que ser. Porque havia de ser!?
Ainda hoje se irrita que assim tivesse sido!...

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Faltas-me (de Mia Couto)

Magoa-me a saudade
do sobressalto dos corpos
ferindo-se de ternura
dói-me a distante lembrança
do teu vestido
caindo aos nossos pés

Magoa-me a saudade
do tempo em que te habitava
como o sal ocupa o mar
como a luz recolhendo-se
nas pupilas desatentas

Seja eu de novo tua sombra, teu desejo,
tua noite sem remédio
tua virtude, tua carência
eu
que longe de ti sou fraco
eu
que já fui água, seiva vegetal
sou agora gota trémula, raiz exposta

Traz
de novo, meu amor,
a transparência das águas
dá ocupação à minha ternura vadia
mergulha os teus dedos
no feitiço do meu peito
e espanta na gruta funda de mim
os animais que atormentam o meu sono.


Mia Couto

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Nun recanto do tempo

Sentada num recanto do tempo, sou tarde de temporal.
No regaço coloco as mãos frias como que a esperar que a chuva passe, o vento deixe de sibilar, as ondas alterosas deixem de me atormentar.
Ponho as mãos no regaço, perdidas, cansadas, inertes, à espera, neste cais que se desintegra, numa espera inútil, onde nenhum barco atraca, farol que não dá sinais.
De repente o crepúsculo cai, a noite fria surge, a noite de naufrágios, a minha noite. Sento-me nos destroços, as ondas rebentam aos meus pés, fortes, gigantescas e a minha alma chora ao ritmo da rebentação.
Sinto-me perdida, sem pontos cardeais, sem bússola, tentando encontrar as ruelas da madrugada que anelo, a que tenha a frescura da hortelã, o cheiro da madressilva, o gosto da amora, a brandura e a macieza do linho gasto.
A noite tapou as ranhuras à madrugada e, asfixiada pela impotência de nascer, recolheu-se atrás de nuvens densas, castelos de fumo.
Lá ao longe, um farol a mostrar-me outro rumo, um barco que se volta, o meu regaço que se inunda, as minhas mãos que submergem, o meu peito que agoniza, o cais a desintegrar-se, e eu, noite de naufrágios,... no recanto do tempo onde me sento...

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Fui mulher


Eu fui silêncio!...
Por longos dias, longos anos,
eu fui silêncio:
Engolido,
vomitado
aumentado.
Eu fui perdão,
eu fui medo!...
Por longos dias, longos anos,
eu fui perdão consentido,
medo multiplicado
de insultos, dores,
humilhacão.

Como sopa engoli mágoa,
a impotência com água,
a dor com lágrimas,
parti espelhos, estilhacei sonhos,
calei palavras, sequei gestos
ganhei tiques,
construí diques...

Quebrei o silêncio,
a rastejar ergui-me,...
reagi amedrontada.
Depois,
fiz-me a mulher coragem
da penumbra dos meus dias,
pássaro esmiuçado na ponta do bastão,
que indefeso cai ao chão.
E,
aos meus olhos
a noite voraz desceu
em pleno dia
e,
os meus olhos foram noite,...
na paz da noite!...

domingo, 22 de novembro de 2009

Fascínio

Um sábado de Outono com cheiro a Inverno: chuvoso, húmido, frio.
De vez em quando apetece-me ver o mar; quem lê o que escrevo, apercebe-se facilmente do fascínio que o mar exerce sobre mim. Não posso dizer que seja uma paixão embrionária, com cordão umbilical ainda por cortar. Afinal de contas só toquei a água do mar quando tinha dezanove anos. Digamos que foi uma paixão à primeira vista.
A primeira ida à praia valeu-me uma insolação. O fascínio à mistura com a falta de experiência relativamente aos perigos que a minha pele tão branca e rosada corria, chegada a Moçambique pouco tempo antes.
Perdoei-lhe a insolação e no fim de semana seguinte, lá estava eu a chapinhar na água, como uma criança.
O mesmo fascínio ainda hoje sinto, muito embora permaneça na praia pouco tempo, pelos perigos que hoje em dia se correm, incomparavelmente superiores aos de então, tudo devido à forma como temos vindo a tratar o belo planeta azul.
Hoje fiz-lhe uma visita, curta, certa de não correr o risco de insolação.
Fiz um pequeno percurso de carro, não mais que quinze quilómetros, julgo eu, até à praia de S. Julião, atravessando algumas belas e típicas aldeias de Sintra. O dia convidava à lareira, mas ainda assim preferi dar uma voltinha debaixo de uma atmosfera que se assemelhava a Natal.
O limpa pára-brisa do carro andou num rodopio. Apesar disso, fui admirando a paisagem da região saloia.
O céu era prateado, carregado de nuvens desejosas de despejarem a chuva, para logo a seguir se irem abastecer ao mar, ali tão perto.
Mal se podia vislumbrar a paisagem nitidamente para além de curta distância, devido ao manto de fino nevoeiro; as casas mostravam-se esbatidas, quais aguarelas pintadas em cores pastel muito suaves.
A estrada começou a ser em declive e com algumas curvas, sinal que o mar estava perto. Estávamos a contornar o monte que do lado do mar se transforma em falésia escarpada.
Dois bares: um junto à areia, outro, o meu preferido, lá no alto, à altura ideal para ver o mar relativamente perto, sem que se correr o risco de levar com as ondas.
O mar de Sintra, agitado, raivoso, a espumar.
Já o tenho observado em dias de Inverno, que de tão zangado, as suas ondas batem de tal forma contra os rochedos, que, em cima se cria uma chuva miudinha.
As cadeiras da parte exterior, em cor laranja e verde abacate esperam melhores dias, dias sem chuva e soalheiros. Lá dentro, a salinha com vista directa para o mar estava fria; aberta no Verão, o sistema de transformação para o tempo frio não é de todo eficaz.
Um café quente com uma queijada de Sintra, fresquíssima, diga-se, para aquecer um pouco.
Sentada estrategicamente para melhor ver a ondulação, ela vinha de encontro ao meu olhar. A quase imperceptível linha do horizonte era cinzento escuro, tão escuro como era o mar que lhe ficava perto, depois, a ondulação caminhava majestosa, a rebentar de espuma. O mar assemelhava-se a um manto gigantesco de tule branco a remexer em harmonia, tais bailarinas clássicas dançando ballet ao som das ondas.
A chuva ainda caía.
Despedi-me do mar.
Respirei fundo e levei em mim o cheiro a maresia.

sábado, 21 de novembro de 2009

Ai!!! Solta-me os nós...


Não me acorrentes!!
Quer queiras ou não, partirei.
Terás a certeza do que te digo quando olhares o mar.
Lá estarei nesse mar, na crista da onda.
Não me vês??
Estou no meio daquela espuma.
Tu não me vês!...

Fecha os olhos, abre o coração, depois… depois ver-me- ás!

Não me prendas!!
Na mesma correrei.
Olha os lameiros. Não me vês a rebolar na erva cortada de fresco, com o vestido manchado de verde? É lá que estou.
Não vês os gafanhotos a saltar à minha frente?
Não me vês!!!

Fecha os olhos, abre a alma ao sonho e vem saltar comigo no lameiro ceifado de fresco, onde as gadanhas foram orquestra, interpretando sinfonias que só serão ouvidas por alguém que alguma vez perseguiu gafanhotos num lameiro acabado de ceifar.
Solta-te…
O sonho não tem limites. Em sonho podes chegar ao que quiseres, onde quiseres.
Só tu és dono dos teus sonhos, mais ninguém. Aliás, se bem pensares, para além dos dias que já viveste, não és dono de mais nada.
Não vens?

Ai!!!

Então desata-me esses nós que me prendem ao chão!!!
Já os desataste?
O lado sonhador acaba por vencer o lado racional, e...

Adeus!!!...

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Solto-me do meu cais




Solto-me do meu cais,
envolvo-me nos teus rubros e dourados,
cubro-me com as folhagens do tempo,
ausente te contemplo
e contigo sou brisa, ventania,
calor e invernada.
Às vezes sou música que te anima,
outras,
sou a solidão que cresce nos apeadeiros
duma linha sem comboios.
Contigo quero chamar-me esperança,
renhida luta,
insistente luta, feroz...
Luta com as imagens que me ocupam,
a saudade faz-se rio...
Quero uma foz para esse rio,
de modo a que o caudal não cresça...
O mar está longe
e a foz,
é uma lagoa pantanosa
onde a água,
devagar, tão devagar, vai indo...
Visto-me de folhas de carvalho e freixo
quando o vento as leva,
ao aconchego
onde me deito,
refúgio adoçado pela brisa,
onde me escondo
das neblinas dos meus dias,
e, nesse aconchego,
sou esperança, descrença,
sou ermo, multidão;
sou tudo,...
e não sou nada!...
Sou herói duma batalha;
poeiras de uma estrela cadente
que se despenha, se espalha;
um minúsculo grão de areia,
que se escapa dos demais!!!....
Visto-me de tudo e de nada,
neste cosmos,
...solta do meu cais.

Devolvo-me...


Devolvo-me...

Devolvo-me
À origem do meu ser.
Barro amassado
Estátua por modelar
Poema adiado
Palavras por rimar.

Devolvo-me...

Devolvo-me intacta
Eu mesma...
Devolvo-me à raiz
Que me segure
E forte me prenda.


Devolvo-me...

Devolvo-me à secura
Para voltar a nascer
Na frincha dum rochedo
Virado a Norte
Para ser
Uma flor
Numa mistura de violeta e cardo
Singela
Forte
Da cor do amor.


Não peço...
Ponto para teatro
Rede para equilibrismo
Cavalo para tourada
Prémios
Palmas
Nada!!...

Basta-me...
Mãos que me aqueçam
Olhos que me bebam
Corações que me amem
Almas que me completem...

Devolvo-me...
Barro
Fraga
Seda
Água
Tronco de madeira
Mas...
Devolvo-me...
Inteira!

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Assim fico... Adormecida.




Aperto-me no gesto contido dum abraço, no silêncio da noite, suspensa, numa cama presa a colunas de granito.
No chão, sardinheiras com aroma acre, rubras, brancas, folhas verdes de veludo,
inebriada estou, nesta envolvência.
Luzes ao longe, quem sabe, de barcos perdidos.
A olhar as estrelas abro as mãos e lhes peço
que desçam
e partilhando a cama,
me entreguem luz, a luz resplandecente.
As estrelas fugiram, antes da madrugada intimista.
Nem uma vela acesa,
luz trémula que fosse, fumo a esvair-se,
juntamente com o fumo do cigarro
que apago com a ânsia de o ter aceso.
Mas ah, como me apetece acendê-lo, soprar o fumo em deleite, vê-lo subir!
A vela terminou, da vela resta o pavio,
na minha alma a solidão,
a solidão que tantas vezes me apetece,
nesse espaço meu onde respiro e me vejo.
Descaíram os braços,
sem que abraçassem aquele abraço.
As estrelas partiram, perseguidas pelo nevoeiro.
Vem agora abraço quente,
com o teu calor,vem condensar o nevoeiro;
tenho tanto frio!...
Quis partir ao teu encontro mas tive medo.
Tive medo que aquele abraço me arrastasse,
em vagas alterosas e me projectasse
para caminhos,
que não são os meus caminhos.
Este nevoeiro confunde-me,
os meus olhos ficam frágeis,
os meus passos lentos,
os meus braços estendidos,
cansados,
tão cansados de esperar.
Quero que a madrugada me beije,
que me abrace e me inspire
para te dizer em poema o que tenho dentro,
o frio que me gela, icebergue nos meus passos.
E, assim fico,
com a caneta na mão,
tentando escrever um poema, em gestação tardia,
neste parto difícil de que resulta,... em nada.
E assim, na rede adormeço,...
na desolação de um filho por parir
ausência de poema,
vontade daquele abraço
E assim fico....
Adormecida.

Um conto de afectos

Erguida caminho
À procura de nadas
Que no fundo são tudo
E sem parar procuro.
Vasculho na vida
O sentido
E na vida tropeço
No chão que escorrega.
Avanço
Balanço
Vacilo, não tombo
E assim avanço.

A caminhar encontro
Um conto de afectos
No horizonte perdidos
Esquecidos no conto
Que ninguém contou.
Com os dedos
Desfolho
As folhas coladas
Caladas
Esquecidas
Que ninguém desfolhou.

Onde estão os afectos
Os afectos do conto!?
Os que não foram dados
Os desperdiçados
Os não recebidos
Os não merecidos.

Arranquei ao conto
A ferida dorida
E de tão dorida
Começou a sangrar;
Apertei-a com força
Para o sangue estancar.
Restaurei o conto
Retirei-lhe a brandura
Lancei-a ao mundo
Para lhe dar doçura

domingo, 15 de novembro de 2009

Sim, sei bem(...)
Que nunca saberei de mim.
Sim, mas agora,
Enquanto dura esta hora,
Este luar, estes ramos,
Esta paz em que estamos,
Deixem-me crer
O que nunca poderei ser.”


Fernando Pessoa

Na brisa



Achei que estarias perto.
Não preciso telefone, nem carta, nem sinal.
Tu sabes que te reconheço à distância,
na brisa que perfumas.
A flor de jasmim fechou as pétalas,
tão inodora se sentiu, quando por ela passaste.
O ramo da madressilva florida,
que tão decidida trepara o beiral,
envergonhada, deixou-se cair.
O cheiro a tomilho e framboesas que transportas,
neutraliza tudo quanto no ar exista;
bom ou mau, acredita.
É por isso que te digo, meu amor,
que tu és o bálsamo que perfuma os meus dias,
o ar que dá alento à minha vida.
Caminha!
Apressa mais o passo.
Quero rapidamente ver surgir a tua silhueta,
lá ao longe, sombra ténue,
como que desenhada pela linha imaginária
do movimento dos meus dedos,
quando ávidos te percorrem.
Os meus dedos,
tão famintos dedos!...
Vem!
Quero sentir o aroma mais intenso,
o aroma do teu corpo
a misturar-se no meu, em profundo enlace.
Caminha!
Vou partir ao teu encontro,
para que os meus braços,
mais depressa te abracem.

sábado, 14 de novembro de 2009

Te canto...


Cantavas-me...
Com a voz doce
Melodias.
Cantavas...
Mas a tua voz estava cansada
As tuas cordas gastas
E cantar já não podias.
Tentaste tocar violino
Pois sabias que gostava.
Mas há, destino!
O violino não tocava.

Caminhavas...
Por caminhos
Que eu contigo caminhava.
Caminhavas...
Com os teus sapatos rotos
Com os teus pés doridos
Persistente, tentavas.
Coseste-os com a esperança
Que um dia te sobrou.
Mas ah, má sorte!
A esperança não chegou.

Sorrias...
E sorrias
Com um sorriso triste
Como quem ri
Para não chorar.
Lágrimas deslizaram
Pelo rosto, peregrinas
E, com elas sorrias
Sorrias para mim.
Mas ah, má sina!
As lágrima secaram.

Escrevo-te...

Com esta mão cansada
Como quem chora
Te escrevo
E neste escrever pranto
Te vejo, te sinto
Te abraço
Caminho
Te canto...

Noite...



Sento-me à espera, na soleira do meu aconchego e ali me despeço do vermelho do poente, quente.
Com os meus sonhos e com a minha solidão, despeço-me da luz que me deixa aos poucos, lentamente, como que a embalar-me e a levar-me para um sonho.
Lentamente apaga-se, interruptor dos dias, faísca das noites.
Aos poucos vais surgindo e contigo vem a brisa, fresca, orvalhada, que me refresca o corpo e sensualmente me arrepia.
Depois, noite enigmática, noite mágica, trazes-me novamente a luz, a luz difusa, prateada, com que me enamoras, noite,...
...a noite dos meus delírios.
Submeto-me à tua vontade e neste não lutar, deixo-me ficar na soleira, sentada, submetida a ti, serena.
Ofereces-me a lua, sorrio e, feiticeira, a lua sorri.
Fixo os olhos, balanço o corpo dançando, dançando ao som de uma melodia que vem de dentro de mim, e danço em rodopio, balanço.
Balanço,... balanço com o vento, suspensa.
Projectas a minha sombra no chão como se fosse num espelho.
Vejo-a, admiro-a, adoro-a como a uma deusa, a sombra fugaz, argéntia, a minha sombra,... a sombra do meu voar.
Continuo suspensa, sentada na soleira, ouvindo os sons da noite, doces, ardentes, melodias ternas de entrega, quentes, sons de paz e harmonia, sons de amor, de alegria, sons de paixão e volúpia.
Depois noite, entrego-me a ti em orgasmos de letras, e com elas me desnudo, faço retratos de sentires, me entrego em orgias de palavras que me saiem da alma, me relaxam os músculos, me fazem ir além de mim, para lá dos meus horizontes, dos meus limites.
Nessa entrega, em ti permaneço, a ti pertenço , noite, desde o crepúsculo dos meus sentidos, até o ocaso das minhas pálpebras e em ti me dou em alvoradas de palavras, repletas de sentires, afectos, raivas, paixões, desilusões, sonhos, esperança.
Em ti renasço,
aterro, levito,
resisto, cedo,
incendeio, apago
morro, ressuscito,...
simplesmente em palavras.
Noite!...

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

De mais nada

Não sou dona de nada
Nem sequer dona de mim.
Não sou dona
Dos meus dedos errantes
Da minha mente peregrina
Do meu coração liberto
Da minha alma libertina.
Não sou dona dos meus passos
Que me comandam os pés.
Se me perguntares quem sou
A resposta que te dou
É que unicamente sou
O que a vida me ensinou.
Mais nada posso ser!
De mais nada quero ser
Dona.

É longe e perto

É tão longe o tempo
Que de tão longe
Eu não sei se chego.
É longe o mar
É mar revolto
Revolto, envolto
Em desassossego.

É longe o tempo
Em que foi o tempo
Que de tão longe
Nele me perdi.
É longe o prado
Onde me liberto
Florido, amado
Que eu não esqueci.

É longe o mar
O mar sereno
E sendo longe
Se faz tão perto.
Dispo-me do tempo e,
Coberta de espuma
Nas tuas vagas navego
Aqueço a pele
Sob um sol ameno.

É longe o tempo
Que de tão longe
Ele está tão perto.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

... ou o que seria

Tinhas tanta sede
e com a água aí
tão perto!
Gastaste as unhas a cavar,
feriste a ponta dos dedos,
mas a água não brotou
e nela não pudeste molhar,
os teus lábios
que de tão secos,
se gretaram, a sangrar.

Caminhavas por caminhos
que tão bem tu conhecias.
Núvens baixas te mostravam
o céu que tu bem vias,
mas nunca os dedos o tocavam.
Desdita, impotência, má sina,
destino, ou o que seria;
tu nunca chegaste ao céu
e mesmo estando o céu em ti,
nunca esse céu te cobria...

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Depois do pequeno almoço

Inês é uma mulher como tantas outras da sua geração: Livre, espírito irreverente, pés bem assentos no chão. Ás vezes não pareçe, dado o seu ar sonhador e ausente, mas tem. Os pés tão assentes no chão tanto quanto o espírito, num misto de sonho e racionalidade.
Caminhava na Avenida 5 de Outubro em Lisboa, numa manhã outonal de meados de Novembro. Vestia uma capa para se protejer da chuva que ameaçava cair, cinzento prateado, de modelo moderno que caía em ligeiro godés sobre calças pretas e a túnica de seda com motivos pretos, bejes, castanhos e roxos. À volta do pescoço, um cachecol de algodão do mesmo tom de roxo. Nos pés, meias arrendadas do mesmo tom do cachecol que os sapatos pretos decotados, de salto alto, deixavam ver. Vestida com chitas ou cetins, para ela, o sentido de estética na combinação das cores, prevalece em relação à qualidade dos materiais e dos preços.
Caminhava com um livro volumoso que aproveita para ler em todos os minutos livres, um romance com seiscentas e onze páginas, escrito por José Rodrigues dos Santos, de leitura fácil. Lê-se duma assentada, diz. Tinha lido outros em que muitas vezes tinha que voltar atrás para melhor entender a linguagem do autor e agora apeteceu-lhe ler algo mais leve e óbvio.
Caminhava com ele na mão esquerda, encostado ao peito; na mão direita, uma carteira pequena, tipo pochete. O som do pisar firme no passo apressado ouvia-se nitidamente, o que é uma característica sua e que denota o seu temperamento firme e seguro, tanto como as rochas que a viram nascer.
Sentiu-se observada.
Um homem com sentido de estética repara para a combinação das cores que uso, pensou.
Constatou que o motivo não era esse, quando ouviu um “desculpe”. Olhou para ele intrigada e parou na continuação da mesa da esplanada que ocupa parte da largura do passeio da avenida.
Teria mais ou menos a mesma idade que ela, sessenta e alguns anos, alto, bem apessoado, com uns olhos transparentes verde esmeralda, do mesmo tom da camisa que usava, impecavelmente engomada. Os olhos, um perfeito mar sereno envolto em pálpebras.
Gosta de ler, perguntou.
Sim, a avaliar pelo volume do livro que estou a ler, claro que sim, respondeu Inês. É que sabe, aconselharam-me este livro, um amigo, um amigo intelectual aconselhou-mo mas acho-o demasiado maçudo, muitos pormenores que quanto a mim não ajudam em nada à história que conta; está a faltar-me paciência.
Inês olhou para o livro que estava em cima da mesa e de relance pensou, em fracção de segundo, o tempo entre dois pestanejares:
Quê que este gajo quer de mim!!? Engatar-me e galar-me, ou foi a um vendedor de livros em segunda mão e quer impingir-me o livro mais caro!!?
Continuou em pé a olhar e, no tempo de outro pestanejo, a pensar que poderia estar a fazer figura de ursa ao pé de um engatatão de meia tijela,sobejamente conhecido como tal no café. Ainda assim, continuou, até porque só é enrolado quem quer, pensou.
Este também é muito pormenorizado disse ela.
Sim, mas esse está cheio de pormenores ligados à história; desculpe, estou a roubar-lhe o seu tempo.
Não, não faz mal, não tenho pressa, disse Inês.
Logo a seguir seguiu-se um sinal com a mão, e o convite para se sentar na cadeira em frente, para conversarem sobre livros e autores que apreciassem. Inês não aceitou, claro.
Não, obrigada; o meu tempo..., mas,...quer que lhe compre o livro?
Não, não! Ofereço-lho.
Foi nesse instante que Inês olhou para a mesa com atenção para ver o autor e o título. Não conhecia.
É espanhol, perguntou.
Não. É chileno. Foi-me aconselhado, mas não me apetece lê-lo. Também não gosto da escrita de Saramago, disse.
Eu também não, respondeu Inês. Comprei o último livro dele, Caim, mais por causa da polémica, para ter uma opinião. Lê-lo-ei logo que acabe este. Pode ser que mude de opinião.
Naqueles escassíssimos momentos chegaram à conclusão que gostavam da escrita de Lobo Antunes.
Li há muitos anos os primeiros livros da sua carreira como escritor, emprestei-os, já não sei a quem e nunca mos devolveram, referiu ela. Depois, seguiram-se outros e agora vou comprar o último, estou curiosa. Ele tem aquele ar de lunático, mas é só ar.
Ah sim, sim, concordou ele. Viu a entrevista dele com a Judite de Sousa?
Inês tinha já na sua mão esquerda os dois volumes encostados ao peito.
Quando endireitou um pouco o corpo para seguir o seu caminho, olhou com mais atenção para a mesa. Um maço de cigarros, um isqueiro em cima, uma chávena com restos de café com leite do pequeno almoço, o espaço vazio do livro e com ar despachado disse-lhe:
Obrigada pelo livro e olhe, deixe de fumar, ...eu já deixei.
Sou um tonto, um parvo! Às vezes fazemos destas coisas.
Deixe e pronto. O fumo faz-lhe mal aos seus bonitos olhos.
Quando acabou a última sílaba, já estava a dar o segundo ou o terceiro passo e não esperou pela resposta. Continuou com o seu pisar firme, como sempre.
Pode ser que um dia o encontre e lhe diga se gostou ou não do livro, se tiver coragem para ler as mil e trinta páginas do romance 2666.
Há coisas,...pensou ela, quando, já sentada no comboio de regresso a casa, acabou de ler as capas e contracapas do livro de Roberto Bolanho.
Alguma vez eu imaginei que um desconhecido me iria oferecer um livro, ainda que fosse um livro rejeitado!
Há coisas!...

domingo, 8 de novembro de 2009

Um Domingo cinzento

Acordei com o dia já cinzento, mas nem por isso fiquei triste como era o dia.
O ar húmido que apanho, quando pelo quintal deambulo antes da chegada da chuva, encaracola-me os cabelos, conferindo-lhes um ar de maior rebeldia.

Um almoço a dois. Os filhos hoje não puderam. Um almoço adequado ao dia húmido, um tanto frio, acompanhado com uma salada de azedas, das dos paredões do Douro e que já se habituaram ao clima do quintal, em Sintra; uma outra tacinha de alface e rúcula também do quintal, para que a refeição se tornasse mais leve, pela mistura biológica do verde das saladas e os olhos se sentissem mais fácilmente saciados, com a paleta de cores verdes.

Um fantástico documentário sobre Berlim, na Sic,(quem diria) obrigou-me a mudar de lugar à mesa para que a pudesse acompanhar sem que a cervical me doesse, por olhar para o écran de esguelha.
Excelente! Nos meus olhos formaram-se cortinas de gotículas, diversas vezes, pela emoção. Não é difícil, confesso, mas neste caso justificadas. Berlim destroçada pela guerra, a divisão da cidade, a construção do muro,a polícia Stasi, a separação das famílas por vinte e oito anos em apenas uma noite, finalmente a queda.
Ainda sinto o coração apertado, como aliás já tinha sentido quando visitei a cidade há três ou quaro anos e imaginei o sentir daquela gente. Aquele rectângulo quase perfeito na cidade, que passou a ser a parte ocidental, em mil novecentos e sessenta e um, com arame farpado e apertada vigilância e depois com betão sólido, uma aba saliente ao cimo e algumas partes por um canal.
Morte para quem ousasse tentar transpô-lo.
O Muro da Vergonha! Um dos muros da vergonha, infelizmente, dir-se-á.
No dia nove de Novembro de mil novecentos e oitenta e nove, passados vinte e oito anos fez-se a demolição, a alegria estampada no rosto, o reencontro; o ficar boquiaberto com as coisas ocidentais por mais corriqueiras que fossem.
Dizia-nos uma jovem nascida na parte oriental, criança na altura do derrube: "Fiquei maravilhada com o papel higiénico colorido, só o conhecia branco".

A reportagem fez-me relembrar a cidade que calcorreei durante uma semana, onde pisei várias vezes as marcas do muro no chão.
Uma cidade completa, magnífica e culturalmente imponente, nomeadamente do lado oriental.

Há por todo o lado, nas imediações do que foi o muro e das partes que deixaram intactas,divulgação completa da história, para que a história não se repita...
Assim o desejo.

A seguir à reportagem, a chuva. O convite para ficar em casa.
Não, não vou desta vez obedecer à chuva, mesmo que o som das goteiras seja reconfortante...
Tenho que sair, caso contrário, arriscar-me-ei a ficar melancólica...

sábado, 7 de novembro de 2009

...Faz de mim árvore de Outono
que lentamente perde as vestes.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

E,... prossigo


Viajo em cima das palavras
a descansar do tempo que me pesa.
Deambulo por sinuosas veredas
para me encontrar com o que fui,
embrenho-me em florestas densas,
em bosques perfumados,
a mendigar frescura para os meus passos.
Viajo sonâmbula,
por entre giestas e espinheiros
que me tolhem os movimentos,
me confundem o destino,
me estonteiam com o odor forte,
me cravam espinhos na carne
que me dilaceram a alma.
Quero encontrar uma fonte com água fresca
que me mate a secura dos meus sonhos,
que me hidrate a pele franzida.
Quero sair desta secura imensa
que me esgota o rio das palavras brancas
e me impele para becos sem saída.
Viajo em palavras e assim me reeencontro
e me embalo em ondas leves
de mares serenos.
O que fui,
que interessa!!?
O que serei,
quem sabe!!?
Desço das palavras
e, revigorada,
escalo torres de marfim,
lanço um olhar sobre o mundo hostil,
espreito as artérias do rio
onde o meu sangue pulsa, doce...
e,... prossigo.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Caíste num poema




Caíste num poema
e foi lá que te achei.
Com hipérbole o enfeitaste
e disseste que gostaste,
mas eu não acreditei.

Saltitaste em vogais e consoantes.
Descobriste as palavras,
entre metáforas escondidas.
Paraste um pouco nas vírgulas,
hesitaste no ponto e vírgula,
partiste no ponto final.
Declamaste-o
e não te saíste mal.

Leste partes com calor,
outras percorreram-te a espinha.
Outras causaram-te dor,
num céu de neblina.

Caíste no poema
mas não o levaste contigo.
As metáforas extravasaram
do rio onde nasceram.
As vogais e consoantes
choraram de tristeza,
solitárias, sem abrigo.

O poeta partiu.
O poeta é errante.
É o seu destino
e vai.
Vai para outro poema,
a sonhar com outro tema.

O poema ficou.
Sozinho chorou.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Tudo ao contrário


Não!
Que engano!
Porque te peço para sorrir e contemplar uma flor,
se há tantas crianças sem amor.
Porque te peço para olhares o veleiro a balançar no mar,
se há tanta gente sem cais.
Por que te digo para fixares a lua, a Via Látea,
se há tanta gente sem luz em suas vidas,
cegos de esperança.
Vai lua!
Vai alumiar quem deves,
lua selectiva, sempre a olhar quem te contempla,
quem de ti quer inspiração para escrever sonhos.
Vai lua e alumia
e aclara os sonhos medonhos.
E tu estrela do céu!
Porquê que o teu cintilar não penetra
nas mentes obscuras daqueles
que maltratam, que violam,
dos governantes tiranos,
em vez de inspirares poetas.
Ó céus, até o céu anda às avessas!...
Ó mundo, o mundo gira ao contrário!...
Ó homens, distribuam bem o pão,
a fome, a miséria, a desdita,
para que a sina bendita,
não seja sempre dos mesmos!...
Homem,... abre o coração!

Acordo, ressuscito!


Sou flor hipnotizada e,
Por momentos morro.
Ressuscito
E vejo o beija flor a sorver-me o néctar,
O nectar todo.
Ressuscito do torpor com violéncia.
Dos meus olhos jorram rios
Dos meus poros enxurradas
No meu peito pulsa o mar.
Ondas gigantes percorrem-me
Em vai-vem
Nun arredar para ganhar balanço.
O meu sangue recua
E ao contrário das ondas,
Recua sem avanço.
Estremeço
Empalideço
Descanço...
Acordo do pesadelo
Ressuscito
Troco a almofada
Molhada
Limpo os poros
Seco os rios
Esqueço...
E sigo.


segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Porquê


Porquê que não te achei amor
Há muitos dias
E os meus pés
Não trilharam os teus passos.
Porquê que não te achei amor
No volátil das artérias
E os meus braços
Não encontraram
Os teus abraços.
Porquê que não te achei amor
No cimo da montanha
Trepada a sete fôlegos
Quando os rios eram lava
A escorrer em vales fundos.
Porquê que não te acho
Em cada esquina
Em cada madrugada
Em cada sombra
Em cada sol
Em cada estrela
Em cada rua
Em cada viela
Em cada fio de água morna
A percorrer-me as veias
A encher-me a alma.
Acho-te no cansaço
Dos dias escassos
Das noites despertas
Dos rios mansos.

Se não puderes ser um pinheiro, no topo de uma colina,
Sê um arbusto no vale mas sê
O melhor arbusto à margem do regato.
Sê um ramo, se não puderes ser uma árvore.
Se não puderes ser um ramo, sê um pouco de relva
E dá alegria a algum caminho.

Se não puderes ser uma estrada,
Sê apenas uma senda,
Se não puderes ser o Sol, sê uma estrela.
Não é pelo tamanho que terás êxito ou fracasso...
Mas sê o melhor no que quer que sejas.

Pablo Neruda
É assim que te quero, amor,
assim, amor, é que eu gosto de ti,
tal como te vestes
e como arranjas
os cabelos e como
a tua boca sorri,
ágil como a água
da fonte sobre as pedras puras,
é assim que te quero, amada,
Ao pão não peço que me ensine,
mas antes que não me falte
em cada dia que passa.
Da luz nada sei, nem donde
vem nem para onde vai,
apenas quero que a luz alumie,
e também não peço à noite explicações,
espero-a e envolve-me,
e assim tu pão e luz
e sombra és.
Chegastes à minha vida
com o que trazias,
feita
de luz e pão e sombra, eu te esperava,
e é assim que preciso de ti,
assim que te amo,
e os que amanhã quiserem ouvir
o que não lhes direi, que o leiam aqui
e retrocedam hoje porque é cedo
para tais argumentos.
Amanhã dar-lhes-emos apenas
uma folha da árvore do nosso amor, uma folha
que há-de cair sobre a terra
como se a tivessem produzido os nosso lábios,
como um beijo caído
das nossas alturas invencíveis
para mostrar o fogo e a ternura
de um amor verdadeiro.


Pablo Neruda

sábado, 31 de outubro de 2009

Dai-me talento



Tenho tanta coisa dentro do peito
Em forte ebulição, pronta a sair.
As coisas estão alvoroçadas
Como está a terra na água do rio
Que corre veloz, com as trovoadas.

Quero soltar as palavras
Para que a enxurrada decante
Para que o meu rio amanse
Mas falta-me a coragem, a arte
E o engenho para construir frases

Dai-me sabedoria se a tiverdes
Para que o meu grito seja vosso
E para que quando me ouvirdes
Seja de todas, seja nosso.

Sem compreender a razão
As palavras não se libertam
E os remoínhos da minha alma
Que tudo agitam, amansam.

E as minhas palavras aconchegadas
Formam aluvião no fundo
Na espera de serem semeadas
E com a luz despertas
Aquecidas, germinadas.

Dai-me talento
Para deitar para fora as palavras
Na minha alma aconchegadas
Inúteis, caladas.

Quero que gritem o desespero
Das mães esfomeadas
Que assistem à morte dos filhos
Ossos com as barrigas inchadas.

Quero que gritem a humilhação
Das mulheres aprisionadas
Das crianças violadas
E a sua carne vendida
Para prazeres, mas não amadas.

Quero gritar por aquelas
Que de tanta violência sofrerem
Já não sentem o corpo nem a alma.
Impotentes, deprimidas
Já não têm auto estima
Nem forças para reagirem.

Quero gritar por todas aquelas
Com salários de mulheres
E duplicados os seus afazeres
Se escapam sempre a correr.
Embalando os filhos, dormem de pé
E voltam e correm
Ao seu salário desigual, de mulher.

Dai-me talento.
A escrever, quero gritar.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Meto-vos na cadeia




Não te escondas atrás da máscara branca
Que mostras ingénua, pura, divinal.
Já não enganas ninguém
A máscara com que te escondes
É feita do vil metal.

Despe-te
Desce
Aos calabouços dos mortais.

O que é isso?
Perguntas com desdém.
Os calabouços para mim
Não são iguais aos demais.
Os crimes de que me acusam
Usam camisa alva pura
Tão branca como a minha máscara
Que me impedem a clausura.

O vil metal?
Mas que injúria!
Eu processarei quem me acusar
Nestes cargos que comprei
Muito me custou a ganhar.

Demitir-me eu?
Mas nem pensar.

O povo que se esmifre
Que se cosa, que se lixe
Que trabalhe sol a sol
E neste alto paiol
Cá estou eu para o roubar.

Não me insultem ou difamem
Não me teçam nenhuma teia
Porque olhem que daqui onde estou
Meto-vos a todos na cadeia.

Guardo


Esboçaste um sorriso triste mesmo quando falaste de coisas que aparentemente te dariam alegria.
Agora vejo que estavas triste. Tarde de mais eu vi!...
Sempre foste reservado.
Torpe, não pressenti.
Quando me envolveste nos teus braços e me disseste sem palavras o adeus, não sabia que seria um adeus, pensei que fosse um até qualquer dia.
Também tu não sabias; dois meses depois o soubeste.
Precipitaste-te para o abismo, ninguém sabe ao certo a razão...
Tantos porquês proferi, outros tantos ouvi.
Cerrei os lábios, rangi os dentes, numa mistura de raiva e desespero. Firmei os pés ao chão trémulo e sem te olhar, saí.
Tu guerreiro, desististe de lutar. Desististe com a tua razão mas que afinal seria insignificante se a tivesses partilhado.
Poderias ter vivido ainda tanto tempo!
Quão precioso tempo, quão necessário tempo!
Guardo no cofre dos meus sentires a tua voz, das conversas do que foi o nosso último almoço.
Guardo no meu corpo o calor do teu último abraço.
Não preciso de te dizer o quanto era teu amigo; tu sábe-lo.
Se a energia que tinhas vaguear junto aos meus passos, acerca-te de mim... para nos unir-mos em abraços.
Até um dia, meu amigo.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Aos meus filhos


Cortei-te o cordão para te soltar
Quero livre tudo o que amo.
Cortei-te o cordão
Rente ao teu umbigo
Para te deixar voar.
Com o primeiro grito
Quando de mim saíste
Foste senhor de ti.
Com o pedaço de cordão
Que em mim ficou
Velo-te de noite em sonhos
Vejo-te através das neblinas
De dia.
Nas tuas pupilas vejo espelhados
Os temporais, as enxurradas.
Nos movimentos das tuas pernas
Adivinho as tuas felizes caminhadas.
Deixo-te livre
E, como a ua andorinha
Que em cada Primavera volta
Pressinto-te no meu beiral
Livre
Sempre.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Depois, regressa firme!


Pronta a levitar
Olhas o céu
Escolhes a nuvem
A mais fofa
Onde te possas deitar

O que vislumbras, mulher
A olhar para o teu céu?
Queres soltar-te
Do mundo que não é teu
Mas os teus pés estão presos
Como preso está
O teu olhar.

Solta-te, vai!
Em sonhos
Parte em viagem.
Mas antes da partida
Grita ao mundo
Destemida
Que o sentes imundo
Para ti injusto
Sem rumo.

Depois voa, mulher!
Solta os pés da rocha fria
Liberta-te dessa friagem
Segue os teus sonhos
Parte em viagem.
A seguir
Regressa firme
E luta.
Nada é impossível
Com o teu querer.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Enxurradas de sentires



Enxurradas de sentires te acordam
Nas orvalheiras do Outono
Te levam
Para granizos doutras trovoadas
E te banham
Nas águas de outras marés.


És um pássaro
Que vai e que vem
À procura do que tem
E nunca tem
E que nem na Primavera
Respirou o ar que chegasse
Nos remoinhos de vento
Desse tempo
Sem a ousadia para respirar
Em invencíveis ciclones
Que o revigorassem…
Que o enlouquecessem…


Amedrontavas-te
Com a ideia de que a colheita
Pudesse ficar desfeita.
Acabaste por respirar
Apenas uma doce brisa
Sonhando com remoinhos
Ciclones, enxurradas,
Ventos Norte, vendavais.


As folhas secas do Outono
Nos caminhos, em remoinho
Fazem os teus passos débeis.
O ar cortante a anunciar o Inverno
Arrefece o forno que te aquecia
E enregela o teu respirar.


Enxurradas de sentires te embalam…

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Voo



Sou aquela que procura paz
E que nem sempre a encontra.
Sou um puzzel onde há uma peça
Que não encaixa.

Resvalo…
A custo levanto-me e continuo a resvalar.
Em tudo resvalo
No tempo que não tenho e no tempo que me sobra
Nos caminhos tortuosos e nas alamedas perfeitas
Nos rios limpos e nos lagos lamacentos
Nos pisos gelados e nos caminhos secos.
Resvalo...
E embato contra mim própria.

Vasculho…
Há sempre algo que não encontro
Algo que se perdeu
Numa núvem de poeira.

Os olhos procuram, lacrimejantes
Em pestanejar constante.
Fixos e ausentes deixam de pestanejar
E de repente
Algo vislumbram
Num canto esquecido, amarelecido.
Será essa a peça que procuro
Aquela que me falta encaixar?
Tento arrancá-la à força
Mas não a posso despegar.
Desvio o olhar
E não há nada.


Caminho...
Continuo a minha vida
A paisagem onde falta
Um pedacinho de azul no céu.

Voo ...
Em direcção ao azul.

sábado, 3 de outubro de 2009

Não!!!!


....indecisa, segue um carreiro, sem saber o destino...
Caminha,... caminha e vacila.
Arrefece
É maresia
Pegajosa e húmida.
Estremece...
Com o ronco que vem do fundo
Da falésia gigantesca
Pára assustada e treme.
As vertingens enrolam-lhe o cérebro
E reclina-se para o abismo!
Não!!!!
A custo, recua...
A escarpa a pique
As pernas a tremer
O suor frio
O mar enraivecido

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Na minha cegueira



Quero mergulhar no verde dos teus olhos
Cobrir-me com o algodão das tuas pálpebras
Ser em ti barco à vela
Entregue ao sabor das tuas danças.
Quero mergulhar nas tuas lágrimas salgadas
Banhar o meu corpo no teu leito, esquecida
Perdida no tempo e no espaço, acariciar-te
Em leve vaivém, entrega apetecida.


Depois, quero ficar em contemplação
Seguir os teus contornos no horizonte
De olhar fixo, ausente, sem destino
Percorrer-te à deriva, entregue à sorte.
E, encandeada pelos clarões dos espelhos
Que me apontas e me cegam
Perder-me na minha cegueira, …..sem norte.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Outono


Amarelecem árvores
Escapam-se pássaros
Arrefecem corpos
Das paixões de Verão.

Amarelecem vidas
Da vida gastas
Envelhecem sonhos
Em sonhos que não vão

Árvores que se despem
Corpos que se abrigam
Cabeleiras de prata
Folhas sobre o chão

Outono é descanso
Em tons das castanhas
Corpos que se amparam
Nada é em vão

sábado, 26 de setembro de 2009

Onde estou


Nas memórias das savanas
Procuro-me e não me encontro.

Procuro no vermelho do sol
Procuro nas queimadas
Algo que me leve a mim
Algo que me leve a ti.

Onde estou
Que não me encontro
Onde vou
Que nem eu sei
Que caminho foi
O que trilhei.

As imagens estão esbatidas
As memórias desbotadas
As fogueiras apagadas
Dos caminhos nada sei.

Nas memórias do cacimbo
Procuro-me e não me vejo
Envolta na areia do mar
À noite mais ao fresquinho
Procuro-me nesse luar.

Procuro-me nas tuas histórias
Que tinhas para me contar
Que ficaram inacabadas
Em suspiros desse olhar…

Onde estou eu
Na história que não acabaste
Quando de súbito paraste…
…onde estou…

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Livre




Caiste ao chão, rosa
Ou será que não caíste
E foste tu que saiste
Do laço que te asfixiava
Te diminuía e tirava
A liberdade
Que construíste.

Salta para a minha mão
Fresca, rosa amarela
Eu vou plantar-te no chão
Sem laços e sem enfeite
Livre de alma e coração.
Das rosas, a rosa mais bela
No jardim, o meu deleite.

Acolhe-me


Acolhe-me.
Deixa-me entrar!
Abre-me as portas
Da tua alma
Para que eu possa descansar.

Estou tão exausta
Deste caminhar!

Lá...
Deita o meu corpo
Em lençois de seda
Com água fresca
Lava-me as fontes
Salgadas, do meu chorar.

Embala-me...
Conta-me histórias
As que nunca me contaste
Empresta-me magia
Doçura da tua alma
Preciso de repousar.


Pudesse eu


Pudesse eu ter o sol
e o sol seria teu
para que te aquecesse!
Pudesse eu ter a lua
e eu ta daria
para que mantivesses o sonho,
para que te inspirasse!
Pudesse eu ter magia
e a magia seria tua
para que o teu mundo
fosse de encantamento!

Não tenho nada para te dar,
meu amigo,
nesta pobreza que sinto!

As minhas mãos são escorregadias
e nada seguram;
a minha mente distraída
e nada fixa,
tudo se me escapa
como me escapa o pensar.

Quero que a mente se concentre
mas a minha mente
age como se fosse louca
e de repente,
a mente já está a sonhar!...

E sonha com o que viu,
sonha com o que quer ver,
sonha com o que já conheceu
e com o que nunca há-de conhecer.

E sonha,...
e segue sonhando
e com esses devaneios vai andando,
de febre delirando!...

Sim,... achei algo para ti!

Das acácias flamejantes trago-te o calor,
o calor da paixão da minha África,
quente e enigmática.

A lua inigualável
ofereço-te a do mês de Agosto
do meu céu de menina;
aí, a lua vem ter comigo
e entra-me na cama;
poderei oferecer-ta
nem que seja por um momento.

Dar-te-ei a magia
nas bonecas
de flores ou de trapos
que eu fazia.
Com elas terás uma orquestra,
um bailado,
um recital de poesia…

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Gritos

Há tempestades!...
Há destroços!...
Como me sinto cansada de tantos tumultos e doente de tantos insultos!
Nas praias sedentas há destroços dessas tempestades, nos corações há marcas desses insultos, nas crianças há ventres dessas fomes.
As areias, sedentas de paz, reivindicam calmaria, suplicam amor; os barcos destroçados suplicam restauro para as suas velas esfarrapadas, para os seus cascos cheios de rombos; não querem afundar-se mas de tão doentes, sentem que o seu fim estará perto.
Ó Deuses terrenos, acabem com as tempestades, gritam!
Ó Deuses terrenos tiranos, gritamos nós!
Grita-se com um grito de desespero, como se se estivesse a anunciar aos marinheiros o embate eminente no bloco de gelo.
Grita-se com pavor do naufrágio que se pressente.
Grita-se com a dor dos golpes que dilaceram a carne.
Grita-se com gritos surdos porque matam.
Grita-se com a fome e sede, já sem forças para gritar.
Grita-se com sufoco, sem ar para respirar.

Há tempestades nos corações , há tempestades nas almas, tumultos em todo o mundo, destroços em todos os cais!

domingo, 20 de setembro de 2009

Dança




Dançaram à noite na praia, sob o olhar das estrelas e a vigília das gaivotas.
O mastro erguia-se e aquele barco balançava, ao acaso.
O vestido de papel bordado com búzios desfez-se, como se desfaz a espuma quando bate nos rochedos e, os búzios regressaram ao mar, em bailado de marés vivas.
Soltaram-se pela manhã deixando na areia fofa as marcas dos seus corpos, selo branco sem contrato.
Desceu a bandeira no mastro, o barco já não balança.
As estrelas adormeceram.
As gaivotas tocaram a alvorada e acordaram os peixes, aninhados em cardumes.
Fez-se dia.


Nos cabelos do vento


Peço ao vento
que me leve nos seus cabelos,
em viagem sem destino.
Prefiro ir nos cabelos do vento
do que de avião
porque assim observo tudo de perto.
De barco tampouco me atrai,
tenho medo de me afundar.
Os meus braços
não passam de fracos remos
feitos de cana,
incapazes de vencer o mar.
Contradições dos meus sentimentos:
amo-o e odeio-o, de tanto me amedrontar.
O vento ouviu o meu pedido
e levou-me, em viagem;
primeiro em voo sustido,
depois lá bem alto,
onde nem a águia pode chegar.
Tudo vi
com o pormenor
do filme de longa metragem.
Do mar recebi a aragem,
do sol recebi o calor;
espreitei a lua serena
e suas crateras observei,
perdi-me no cintilar duma estrela
e a um cometa me segurei.
Ele exagerou no seu voo
e de tão rápido, enjoei.
Com um grito de desespero
roguei ao vento então,
que os cabelos em tranças fizesse
para que com elas me prendesse
e me pusesse no chão!
Prendeu-me com suas tranças,
como em braço de guindaste
e em viagem alucinante,
na terra fez voo rasante,
dum sopro abriu a janela
dos meus olhos e do quarto,
e dizendo:
A tua viagem acabaste,
deixo-te aqui e eu parto
aos lugares que visitaste.
Fechei a janela ao vento
e as minhas janelas também
recomecei outra viagem,
no sonho que a vida sustem.

Ficou


Passou
Como semente lançada na lagoa
Que apodreceu debaixo dos nenúfares,
com medo de germinar.

Passou
Como pássaro amedrontado,
despenhado contra o rochedo,
com medo do gavião.

Parou
E não atingiu o oásis
Com medo das dunas.

Ficou.
Abraçou o destino.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Solto as palavras


Solto as palavras
como se soltasse um pássaro, aprisionado
numa gaiola de rede fina, anos a fio.

Solto as palavras
como quem solta o mar a espumar de raiva
contra os paredões de cimento,
marés altas a fio.

Solto as palavras
como quem solta um condenado
por um crime que não lhe pertencia
e que aos poucos se sentiu morrer,
dias a fio.

Solto as palavras
e os meus pobres dedos deslizam no teclado
ou conduzem a caneta,
aprisionados pelos sentires
que saem de uma alma inconformada
e dum coração despedaçado
pelas injustiças e crueldades da humanidade.
Batem com força nas teclas,
marcam vincos no papel,
como se estivessem a gravar a cinzel
para a eternidade.

Solto as palavras, tão frágeis
como um pássaro ferido
que fechado,
ao se querer libertar
bate contra o vidro
e sai a sangrar.

Solto as palavras, inaudíveis
quando gritam
contra os interesses instituídos,
tão difíceis de mudar.

Solto as palavras, impotentes
quando se insurgem
contra a desonestidade,
a incompetência,
a sede de poder,
a maledicéncia,
um sem fim de injustiças
que urge acabar.

Solto as palavras!....

Vestido de folhos


Caminho descontraída
Olhos fitam-me
Sem me verem
Olhos olham-me
Sem me olharem.
Multidão distraída
Ausente
Distante
Dorida
Perdida.

Finjo ser cigana
Vestido de folhos
Cabelos ao vento
De negro pintados
Quero distribuir sonhos
Quero dar alento
Aos desventurados.

Digo à multidão
Senhor, Senhora
Vou-lhe ler a sina
Na palma da mão.

Uma mão aqui
Outra acolá
Leio linha deste
E daquela lá
E das linhas da mão
Eu saco sorrisos
Eu prometo filhos
Trabalho, pão
Saúde, fortuna
Amor, união.

E aquelas gentes
De ar carregado
De passo apressado
Esboçam um sorriso
Pois sabem lá
Se aquela cigana
Que não sendo cigana
Teria acertado.

O seu semblante
Notou-se aliviado
E o seu coração
Passou a bater
Muito mais acertado.

Sou fábrica de sonhos
E mar de sorrisos
Vestida de folhos
Cabelos ao vento
Eu pobre cigana
Não sendo cigana
Eu faço sonhar
E brilho no olhar
E por um momento
Empresto paraísos.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Sou tua

Quisera eu fazer sair da minha fonte
as palavras em catadupa, transbordantes
e te dizer que te sinto, te quero
e que é nos teus braços
que me aconchego e,
no cheiro do teu corpo me perco.

A fonte de águas cristalinas secou neste inferno estival
e com ela secaram-me as palavras com que te queria cantar,
meu planalto escaldante.
Os meus lábios não te sorriem de gretados, ao olhar-te
e tu olhas-me, em desespero suplicante.

Reguei-te com o meu suor e com a água fresca
que saiu das tuas entranhas e,
regado, rejubilavas durante a noite
mas quase que perecias durante o dia,
queimado pelo sol, agitado pelo vento seco
e te dobravas sobre ti mesmo em agonia de morte, de desespero,
em pedidos de socorro,
olhando o céu à procura de uma nuvem
que te trouxesse chuva.

Secaram-me as palavras
como te estás a secar, meu planalto…

Queria deixar-te um poema antes de partir,
um poema que te fizesse sorrir.

Saiu mudo, o meu poema!...

É um poema de sentires,
sem palavras nem métricas nem rimas.

Não rima dor, com a falta que me fazes;
não rima amor, com os teus poentes vermelhões,
com os teus nascentes roxos e laranja,
com os teus horizontes em que me deito e sonho,
com a côdea dura do teu pão que amoleço e me mata a fome.
Não rima estontear com os teus cheiros,
emudecer com os teus sons,
sonhar com os teus silêncios,
dormir nas mantas que me estendes, nos lameiros
sentir com os teus sentidos.

Não te deixo palavras em catadupa,
porque as não tenho
nesta fonte que julgo seca.
Entrego-te a fonte…
Sou tua para sempre!

Seguidores

Arquivo do blogue